I. Introdução

Falar ou escrever sobre a espionagem medieval é um desafio, facilmente comprovável por intermédio da bibliografia publicada recentemente. Com base nesses textos comprova-se que estamos perante um dos assuntos menos debatidos do Medievismo nacional e internacional. Não obstante, o panorama internacional apresenta-se muito mais dinâmico que o português, de acordo com a análise traçada por Stéphane Péquignot (2017, pp.645-647) em L’information sur l’étranger: espionnages e cujas linhas se seguirão adiante.

O referido autor informa que apesar de estamos perante um tema com alguma incidência nos livros de divulgação, os critérios e as perspectivas de análise são completamente anacrónicos para a Idade Média. Além disso, os principais dicionários e enciclopédias de história medieval em nada têm contribuído para inverter esse panorama. Quer dizer, os autores dessas obras científicas insistem em desconsiderar alguns dos trabalhos mais importantes e pertinentes sobre a espionagem medieval. Por estes motivos compreende-se a crítica que o historiador francês tece ao medievismo: «les espions de la période restent en effet encore des parents pauvres de la recherche sur le Occident». Crítica inequívoca, porque se se comparar os estudos de espionagem medieval com os das épocas posteriores — moderna e contemporânea —, temos como resultado uma «Moyen Âge occidental réduit à la portion congrue dans les histoires générales de l’espionnage»; além de se incutir, erradamente, « l’idée d’un Occident incompétent en la matière» (Péquignot, 2017, p.646). De facto, como este autor refere, os homens da Idade Média não eram leigos em assuntos de espionagem. Seria uma inverdade se tal se afirmasse. Outrossim, estudos recentes e empiricamente sustentados demonstram que, efetivamente, na Idade Média desenvolveu-se uma intensa e profícua atividade de espionagem, não raras vezes fundamental para a projeção externa de diversas entidades políticas (Péquignot, 2017, p.647 e pp.1050-1054).

Convergindo agora para o ponto de situação bibliográfico português, o panorama não sofreu qualquer tipo de alteração desde a publicação de Diplomacia e espionagem na baixa Idade Média portuguesa, em julho de 2019 (Marinho, 2019). Com efeito, estamos na presença de um estudo inédito e que destaca a principal bibliografia a propósito de um tema que ainda não foi devidamente explorado pela medievalística portuguesa. Aliás, Riley (1997, pp. 388-389) já se tinha pronunciado em relação a este problema no final da década de 1990, referindo que «o estudo da espionagem no período medieval, tema cujas evidentes articulações com o domínio da História Política e Militar, está ainda em grande parte por trabalhar»; o que contrasta efetivamente com o grande desenvolvimento que se verifica no debate historiográfico sobre épocas mais recentes. Assim sendo, o presente trabalho aborda as contribuições da espionagem em prol da diplomacia portuguesa na Idade Média, distinguindo-as de muitas análises que tratam a espionagem apenas do mero ângulo do facto militar.

É, pois, inegável a atuação da espionagem associada à diplomacia portuguesa, principalmente entre o final do século XIV e o início do século XV. Durante esse período histórico, Portugal projetou-se continuamente para fora do tradicional quadro peninsular, procedendo, dessa forma a um alargamento e complexificação do esquema geral das suas relações diplomáticas, como apontaram, entre outros, Cortesão (1997), Marques (1987, p.316), Fonseca (2014, pp.45-60) e Marinho (2017, vol.1, pp.18-31). Dessa forma, a Dinastia de Avis também se adaptou a um novo contexto diplomático, influenciado pela experiência da Itália Renascentista: promoção de novas práticas e ferramentas diplomáticas que estão na génese daquela que viria a ser a diplomacia moderna (Lazzarini, 2015 p.7).

Intimamente associada ao incremento da diplomacia e à nova ‘mundividência’ das autoridades portuguesas, assiste-se a uma maior necessidade de informações relativas ao exterior, normalmente obtidas por intermédio de ações de espionagem. Este argumento converge com a tese apresentada por Lazzarini (2015, p.70), ao defender que a espionagem medieval era fundamental para pequenos e grandes atores políticos e induzia os diplomatas a colher um conjunto heterogéneo e precioso de informes dos locais por onde passavam. Posteriormente, esses dados possibilitavam a criação de sólidas estratégias argumentativas e contra-argumentativas dos embaixadores, além de hipoteticamente, se maximizar a oportunidade de êxito nos intercâmbios diplomáticos. Em outras palavras, esses informes forneciam o repertório, o vocabulário e os argumentos para a discussão, de modo a que pudessem legitimar as posições assumidas pelo soberano que representavam. Com efeito, Riley num trabalho publicado em 1997, comprovou indispensabilidade da espionagem para a diplomacia. Nesse texto analisa um raríssimo relatório de espionagem efetuado em Castela e que se revelou fundamental para a ação governativa do Infante D. Pedro, no decorrer de 1441. Na verdade, nesse ano, «o Regente recebia embaixadas de Castela com requerimentos a que era necessário dar resposta, mas resposta devidamente fundamentada» (Riley,1997, p.399).

Contudo, e em abono da verdade, não podemos repreender os medievalistas por falta de interesse pelas questões de espionagem medieval. A ausência de estudos a propósito deste tema deve-se, em grande medida, às dificuldades heurísticas inerentes à exploração da matéria em apreço. Quer dizer, a política de sigilo — de que Jaime Cortesão fala — inibiu a produção e, principalmente a conservação de fontes específicas sobre as operações de espionagem desenvolvidas pelas várias unidades políticas da Idade Média. A este respeito prestemos atenção às palavras de Whatson (2014, p.68), palavras que explicam de forma pertinente as imensas lacunas que condicionam os estudos relacionados com a espionagem medieval:

«by their very nature, spies and spying are not easily discernible in the documentary record. The historian very rarely knows anything about the personalities and private circumstances of medieval spies. Governments were extremely reticent about referring to secret agents in their employ. Terms are often vague in the documentary sources».

Deste modo, e perante esta realidade, onde pode o investigador português encontrar elementos da época que o ajudem a compreender a realidade que envolvia a espionagem medieval? Conforme foi apresentado em publicação anterior, «o investigador que se dedique ao estudo da espionagem do Portugal medieval terá nos relatos cronísticos descrições de grande valor, o que os torna numa das principais fontes de consulta» (Marinho, 2019, pp.195-196). Não obstante e sem querer desmerecer os relatos cronísticos, mas no que a este aspeto diz respeito, a bibliografia tem demonstrado que é precisamente aí que se encontram as informações menos relevantes. Como tal, impõe-se a necessidade de compulsar outras tipologias documentais, nas quais se possam recolher dados mais consistentes. Uma das primeiras fontes que nos ocorre está inserida no capítulo 96 do Livro da Cartuxa: trata-se de um conjunto de complexas cifras do rei D. Duarte, cuja necessidade de descodificação já foi salientada por Dias (1982, VIII-IX). No entanto, existem outras fontes que impõem menos dificuldade de leitura — e de acesso? —, das quais se destacam os textos de reflexão política, as cartas de conselho, cartas de instrução, diários de viagem, entre outro tipo de documentação avulsa como é o caso dos relatórios de espionagem, exemplarmente estudados por Riley (1997). Este tipo de documentação, objeto de um estudo recente, constitui uma ferramenta fundamental que permite complementar o quadro dos contactos internacionais de uma determinada entidade política por intermédio de descrições que veiculam nuances que, de outro modo passariam despercebidas noutras tipologias documentais (Cunha, et. al., 2019).

Perante o panorama que se apresenta em relação à importância do tema, como também a alguns aspetos metodológicos e de revisão da literatura, cumpre apresentar —ainda que de forma sintética— os três grandes objetivos deste artigo. Assim, em primeiro lugar (II), ir-se-á analisar a importância dos embaixadores/diplomatas enquanto ‘agentes’ da espionagem medieval. De seguida (III) será abordada a questão da imunidade diplomática, tendo como pano de fundo o facto dos embaixadores atuarem por vezes, como espiões. Por fim, (IV) ir-se-á debater a espionagem como crime de lesa-majestade, quando praticada por um embaixador/diplomata, à luz das Ordenações Medievais portuguesas.

 

II. Os embaixadores enquanto “agentes” da espionagem tardo-medieval

Num estudo recentemente publicado são apresentadas algumas anotações a respeito dos espiões medievais. Nesse texto lê-se que durante a Idade Média não existia um perfil definido para esses indivíduos. Quer dizer, tanto a espionagem como a diplomacia eram atividades ad hoc, cujos membros podiam ser recrutados em qualquer grupo social para, durante um determinado período de tempo, executarem uma missão muito específica. Mas não se julgue que essa seleção era arbitrária e despojada de critérios. Muito pelo contrário. Um dos principais cuidados na preparação de uma missão de espionagem era a seleção do vestuário, por se tratar de uma «marque générale d’affirmation et de reconnaissance de l’appartenance à un statut social, habit peut au Moyen Âge posséder également une portée symbolique, une signification politique» Péquignot (2017, p.658). Devido ao exposto era essencial, v.g., que os espiões conhecessem muito bem os códigos de vestuário da terra/Corte à qual iam recolher informações. A título de exemplo, nas Cortes de Lisboa de 1459, foi deferida parcialmente uma pragmática a respeito do vestuário. Sousa (1990, vol. 2, p.361, n.º 24), refere-se a ela da seguinte forma: «que o rei use de moderação sem desprestígio da sua dignidade, no que toca a vestuário, moradores, rações e despesas de sua casa; que impunha análoga moderação a todos os fidalgos do reino; que ninguém vista panos de qualidade superior aos do rei, excepto os descendentes de real linhagem».

Mas os cuidados não se prendiam unicamente com a escolha do traje. A pessoa que tinha a incumbência de espiar devia possuir bons conhecimentos da língua local, ser discreta e astuta. Desta forma seria capaz de superar, com maior facilidade, múltiplos desafios que inevitavelmente poderiam surgir no decorrer da missão. Todavia, a literatura especializada tem demonstrado que as embaixadas medievais eram o principal veículo da espionagem político-diplomática, especialmente quando se queria espiar a cúria de determinada entidade política. Com efeito, a preferência pelas embaixadas parece óbvia, não só devido aos rígidos critérios de seleção, mas também à imunidade diplomática conferida aos diplomatas. No entanto, justamente devido a esta faceta da diplomacia, muitas entidades políticas passaram a encarar as embaixadas com alguma desconfiança. Sendo assim e perante este cenário, os espiões eram recrutados, normalmente, entre os mais destacados homens da administração régia para posteriormente incorporarem uma missão diplomática ao exterior. Entre as pessoas que assumiam um ofício diplomático apontam-se, entre outros, clérigos, nobres, altos magistrados, oficiais de armas e mercadores ((Whatson, 2014, p.69 e Marinho, 2018 e 2019, pp.197-198).

A partir do momento que um indivíduo assumia um ofício de diplomata, independentemente da sua posição na estrutura social, era-lhe reconhecida como já se referiu, imunidade diplomática. Esta questão foi amplamente debatida ao longo da Idade Média, não só por juristas, mas também por alguns cronistas. Para uns e para outros, a imunidade era algo inerente aos diplomatas e tratava-se de um conceito universalmente respeitado, como refere Menzel (1892, p.89). Na impossibilidade de referir todos os autores que discutiram o tema, mas também de forma a não ser repetido o que esses estudiosos disseram, focar-se-ão apenas dois casos meramente exemplificativos. Um diz respeito a Mateus de Pisano e o outro a Bernard du Rosier. Nas palavras do primeiro, D. João I optou por enviar dois embaixadores para espiar Ceuta —ato preparatório para a conquista da praça, em 1415—, em virtude destes «gozarem de respeito e de inviolabilidade» (Pisano, 1915, cap. 32). Por sua vez, Rosier, jurista quatrocentista francês (Gilli, 2015), refere que a imunidade dos embaixadores/diplomatas repousava no Ius Gentium: «pro particularibus negocijs particulariter transmittantur. propterea jus genciuz <sic> hoc officium religionem esse censint, et multipliciter preferendam, ac priuilegijs, prerogatuus honoribus favoribus, et immunitatibus universis ab omnibus» (Biblioteca Nacional de França), Mas. Lat. 6020, fl. 49).

O Ius Gentium mencionado por Rosier tem sido destacado por alguns historiadores dedicados ao estudo das Relações Diplomáticas da Idade Média. No entanto, a despeito da literatura entretanto publicada e desse Ius ser considerado uma das peças-chave da imunidade diplomática, está-se perante um dos assuntos jurídicos mais complexos que a Idade Média herdou da tradição Romana, tanto que Ulpiano o caraterizava como um campo de argumentação bastante labiríntico e difuso (Karsten, 2005, pp.131-133 e Péquignot, 2009, pp.177-178). Essencialmente, essa dificuldade em torno do Ius Gentium resulta de, ao longo da Idade Média não ter existido um Direito Internacional reconhecido pela generalidade das entidades políticas. Mas, apesar da imunidade das embaixadas ser um ponto assente naquele tempo, muitos príncipes não recorriam ao Ius Gentium para chancelar essas decisões. Faziam-no com base em princípios ancestrais de hospitalidade para com os estrangeiros, considerados como «une pratique de réciprocité au fondement anthropologique très ancien» (Péquignot, 2017, p.420).

De entre as unidades políticas medievais que reconheciam a aplicabilidade dos Ius Gentium há os reinos Ibéricos, nomeadamente Portugal e Castela. De facto, podemos encontrar ressonâncias desse Ius em compilações legislativas como as Siete Partidas de Alfonso X e nas Ordenações Afonsinas, como nas que se publicaram posteriormente. Em relação às primeiras Péquignot (2017, p.420) refere que «Alphonse X stipule que le mandadero (mandataire) et sa femme ne peuvent être dessaisis d’aucun bien ou d’aucun droit au cours d’une mission. Si tel est le cas, l’envoyé dispose de quatre années pour obtenir restitution par une juge royal».

Particularmente, no que respeita às Ordenações Afonsinas verificamos que o livro terceiro apresenta matéria muito importante relacionada com a imunidade atribuída aos embaixadores/diplomatas. Esses preceitos legais estavam, como o próprio legislador refere, amplamente assentes no «Direito Imperial [i.e., Romano], que dantiguamente lhes assy foi outorgado», ou seja, no Ius Gentium (Ordenações Afonsinas, Liv. III, tít. 3, §4). Sendo assim, um diplomata estrangeiro e toda a sua comitiva, podia usufruir de várias prerrogativas durante o período que durasse a missão diplomática. Mas não só. Caso algum diplomata necessitasse de permanecer mais tempo em Portugal, o monarca poderia atribuir mais dez dias de imunidade. Todavia, terminado esse prazo e, caso esse indivíduo tivesse pendências judiciais ou fosse acusado de algum delito em Portugal, a Ordenação determina que ele «poderá geralmente ser citado [i.e., em Corte], como qualquer outro do Povo» (Ordenações Afonsinas, Liv. III, tít. 3, §2). Além destas prerrogativas que garantiam a segurança dos diplomatas, a legislação também previa a possibilidade desses indivíduos apelarem para os tribunais portugueses, caso fossem alvo de alguma «injuria, furto, ou roubo, ou dapno, que aja recebido depois que da sua terra partio, e entrou em nossos Regnos» (Ordenações Afonsinas, Liv. III, tít. 3, §3).

Estas prerrogativas conferidas aos diplomatas encontram-se plasmadas nas cartas de salvo-conduto, como também se pode observar na referida Ordenação: «E ESTE Privilegio dos Embaixadores Mandamos, que se guarde, sem embargo de serem culpados, se ouvirem salvo conduto, em que sejam nomeados» (Ordenações Afonsinas, Liv. III, tít. 3, §5). Esta decisão, do legislador português do século XV, indicia que as cartas de salvo-conduto eram imprescindíveis para que os diplomatas fossem isentados das leis e de qualquer tipo de arbitrariedade durante a sua estadia no Reino. Recentemente Paula Pinto Costa, Cristina Cunha e Duarte de Babo Marinho publicaram um trabalho onde abordam, precisamente, os vários tipos de documentos que um embaixador transportava na sua mala diplomática: v.g. cartas de instrução, de crença e salvo-condutos (Cunha, et. al., 2019).

A título meramente indicativo pode-se apresentar dois casos em que o monarca português atribuiu cartas de segurança/salvo-condutos a diplomas estrangeiros. Um primeiro exemplo tem que ver com a carta de salvo-conduto que D. Afonso V atribui ao Conde de Benavente, a 28 de fevereiro de 1449. Nesse documento o monarca português declara o seguinte: «E, porquanto a nos praz de sua vijmda, lhe damos, per esta nossa carta, nossa seguramça real, pera el e todos aqueles que lhe prouver comsigo trazer, da vijmda, estada e tornada» (Monumenta Henricina –, vol. X, doc. 8). O segundo exemplo prende-se com a missão diplomática do embaixador do rei de Tunes a Portugal. Assim, a 3 de outubro de 1463, o Africano outorga-lhe uma carta de salvo-conduto para que ele e qualquer membro da sua comitiva pudesse «ir e vir a este Reyno», com total segurança, durante o período que durasse a missão (TT, Chancelaria de D. Afonso V, liv. 9, fl. 147).

Contudo, não se julgue que a imunidade isentava plenamente os embaixadores/diplomatas perante a justiça portuguesa ou de outra entidade política. A Historiografia nacional e internacional apresenta casos em que alguns diplomatas viram as suas imunidades violadas. Citando situações análogas, Drocourt (2013, p.86) refere que a imunidade diplomática era, em muitas circunstâncias meramente teórica e não impedia que os diplomatas fossem sujeitos a vários tipos de pressões, nomeadamente psicológicas. Ou, noutros casos a isolamento forçado, o que se afigura como uma espécie de detenção. No mesmo sentido, Gilli (2015: §19) refere que, na Verona de finais do século XIV os embaixadores suspeitos de serem espiões deviam desembarcar num local pré-determinado e se se recusassem a fazê-lo seriam encarcerados durante 24 horas. O mesmo autor refere ainda que, em caso de recusa adicional a punição seria muito mais severa, espancamento público. Para além destes dois casos, apresentados por historiadores internacionais, a Diplomacia medieval portuguesa também conheceu alguns casos em que a imunidade dos seus embaixadores não foi respeitada. Um desses exemplos é apresentado por Ferreira (1976-1977, pp.619-639): Martim Mendes de Berredo —embaixador português— foi detido em França, em junho de 1457. As autoridades francesas fizeram tábua-rasa de uma carta de recomendação do Papa Calisto III, na qual certificava que o rei de França havia concedido salvo-conduto a todos os portugueses que estivessem ao serviço da Cruzada contra os Turcos, como era o caso de Berredo. A despeito desses documentos, o embaixador português permaneceu encarcerado por mais de um ano, até falecer vítima de febres elevadas, entre o dia 11 e 12 de novembro.

 

III. A imunidade diplomática e a espionagem no Portugal tardo-medieval

Como se disse anteriormente, os príncipes aproveitavam frequentemente as embaixadas para a prática de espionagem, normalmente junto das Cortes dos seus congéneres. Na verdade, várias publicações internacionais têm apresentado resultados que apontam nesse sentido, o que confere autoridade para referir que as embaixadas ao longo da Idade Média foram um dos principais veículos da espionagem. Porém, devido a essa atividade a desconfiança passou recair sob o pessoal diplomático. De vários exemplos que se podem referir os mais notórios são da Hungria, Bizâncio, Veneza e Inglaterra. As autoridades dessas duas entidades políticas, ciosas de manter informações estratégicas em sigilo, limitavam imenso a atuação dos diplomatas para assim minimizar os riscos de espionagem (Péquignot, 2017, p.651). Precisamente em virtude da política de sigilo que envolvia este tipo de atividade, foram muito poucos os dados empíricos que chegaram até à atualidade, o que explica em parte, as dificuldades heurísticas com as quais os investigadores se deparam, nomeadamente aqueles que pretendem estudar o século XV português. De entre esses poucos vestígios documentais, podem-se noticiar dois casos. O primeiro está relacionado com a embaixada do castelhano Alfonso de Cartagena a Portugal, entre as décadas de 1420 e 1430. O segundo caso centra-se numa embaixada portuguesa, liderada por D. João Fernandes da Silveira enviada a Roma, em 1456.

A respeito de Alfonso de Cartagena, Jaime Cortesão informa que este jurista e bispo de Burges encontrava-se em Portugal numa missão diplomática ao serviço do rei de Castela, contudo, o seu real objetivo era espiar a Corte Portuguesa. De certo, o ardil foi muito bem planeado porque, durante uma década Cartagena teve tempo para se instalar, espiar inúmeros assuntos estratégicos e criar laços de amizade com os Avis. Por fim, tem-se notícia, por intermédio do mesmo Autor, que o espião castelhano informou o seu monarca que «a ocidente de Lisboa, a distância incerta, existe, não o arquipélago dos Açores, mas uma vaga ilha do Brasil, que os mareantes portugueses tinham grandes dificuldades em reencontrar» (Cortesão, 1997, p.24).

A despeito dos dados transmitidos por Jaime Cortesão, admite-se a hipótese de as informações coligidas por Cartagena terem tido um alcance muito maior. Apesar de não se terem provas concretas, a sua atuação poderá ter facultado informações importantes para que a diplomacia castelhana lutasse de forma mais veemente pela posse das Canárias. Coincidência ou não, em 1436 Alfonso de Cartagena figura como líder da comitiva castelhana no Concílio de Basileia, no qual apresentou um «devastador e extenso documento jurídico onde mostrava que, sob todos os pontos de vista, a coroa de Castela tinha direito inequívoco ao arquipélago» (Russell, 2004, p.155 e p.245). Após as alegações castelhanas o Papa Eugénio IV publicou a bula Romani Pontificia, a 6 de novembro de 1436. Por intermédio desse texto, o Papa anulou a concessão da conquista das Canárias a Portugal por considerar que se tratava de uma atitude que prejudicava os direitos castelhanos, «cujo monarca declarou que por título antigo e por outras causas, ela pertence à sua coroa» (Monumenta Henricina –, vol. V, docs. 143-144). Dessa forma, os castelhanos pensaram que se tinha colocado um ponto-final à questão das Canárias: contenda diplomática que se arrastava há muito tempo, entre Castela e Portugal (Godinho, 2008, p.192).

Um segundo exemplo elucidativo está relacionado com a embaixada de D. João Fernandes da Silveira a Roma, entre 1456-1460 (Marinho, 2017, vol. 2, p.210, n.º 61). Essa missão surge na sequência de um acontecimento que abalou profundamente a Cristandade do século XV: a conquista de Bizâncio por parte dos Turcos Otomanos, a 29 de maio de 1453. O Papa rapidamente apelou à Cruzada para recuperar a ‘Roma do Ocidente’, contudo, os principais líderes europeus «estavam embrenhados em guerras e questiúnculas e nunca se dispuseram verdadeiramente a organizar um exército para enfrentar os Turcos». Somente um soberano europeu se dispôs a participar nessa Cruzada: «tratava-se, como é sabido, de D. Afonso V de Portugal, o único que não tinha conflitos com os vizinhos e que, ao mesmo tempo, tinha o reino pacificado» (Costa, 2017, p.64).

Consciente do perigo que os Turcos representavam para a Europa, D. Afonso V determina —por carta datada de 20 de abril de 1456— que D. João Fernandes da Silveira aproveitasse a embaixada ao Papa para proceder a algumas ações de espionagem. Sendo assim, pretendia notícias atualizadas a respeito do exército e da marinha turca, bem como «das terras que tem gamçadas e em que maneira as trata e se tem algũas ilhas suas povoadas de algũa jemte sua, ou tributarias e quais, e se pagua soldo e quejamdo e se amdão cristãos co[m] elle e quamtos» (Biblioteca Pública de Évora, Fundo da Manizola, cód. 177, fl. 27v).

Mas a espionagem não devia ser direcionada unicamente contra os inimigos. Os reinos cristãos também eram objeto dos olhares da espionagem de D. Afonso V. No mesmo documento pode-se ler-se que D. João Fernandes da Silveira, após debater vários assuntos com o Papa, entre eles a questão da Cruzada, deveria dirigir-se às Cortes de Veneza, Siena e Florença. Aí deveria apresentar os cumprimentos do rei português e informar as autoridades locais a respeito da Cruzada que se estava a preparar e da necessidade da esquadra de D. Afonso V usar os portos das referidas cidades por questões logísticas. Mas, além destes objetivos declarados havia outros ocultos e que não podiam ser revelados: uma intrincada e organizada ação de espionagem (Biblioteca Pública de Évora, Fundo da Manizola, cód. 177, fls. 24-29v).

Conhece-se que o embaixador português não iria atuar sozinho. Martim Mendes de Berredo e Gil Anes também estavam, implicitamente, associados à missão de espionagem. Além de informar o rei, D. João Fernandes da Silveira também estava obrigado a notificar aqueles dois homens a respeito de «quaesquer cousas que virdes que hee necessario delas saberem por noso serviço» (Biblioteca Pública de Évora-, Fundo da Manizola, cód. 177, fl. 27). Entre os objetivos da missão estava o levantamento de informações estratégicas político-militares. Em primeiro lugar, o embaixador deveria averiguar se o Papa estava a conceder favores especiais a outros príncipes e, caso isso se verificasse, D. João Fernandes deveria solicitar prerrogativas idênticas para Portugal (Biblioteca Pública de Évora, Fundo da Manizola, cód. 177, fl. 27v).

Posteriormente, os dados obtidos em relação aos objetivos da espionagem são, essencialmente, de caráter militar. Do Papa, D. Afonso V queria saber se ele estava a mobilizar forças militares, nomeadamente navais para dar batalha aos Turcos. Caso o apuramento dos factos fosse positivo, o monarca português pedia para ser informado a respeito do aparato logístico, do número de navios guerra e soldados. Esta ação também deveria ser empreendida perante os venezianos e «outras senhorias» italianas. Mas não só. D. João Fernandes da Silveira também teria de se inteirar a respeito das capacidades militares do Imperador e dos reis da Hungria e Polónia (Primeiramente o monarca pretende que D. João Fernandes da Silveira averigue se o Papa estaria a conceder favores especiais a outros príncipes e, no caso disso se verificar, o referido embaixador deveria solicitar, de imediato prerrogativas idênticas para Portugal (Biblioteca Pública de Évora, Fundo da Manizola, cód. 177, fl. 27).

Entende-se que D. Afonso V já poderia ter um certo ceticismo em relação à viabilidade da Cruzada que o Papa estava a preparar. De facto, nenhum príncipe estava disposto a dar batalha aos turcos, a não ser o rei português. A desconfiança de D. Afonso V está subentendida num parágrafo presente na parte final da carta de instrução de 1456. Nesse excerto podemos ler que:

«Posto que ho papa queira desviar nosa ida trabalhay de a ele aceitar e aceitada ou não, prosyguy em vosos requerimemtos dizemdolhe que posto que laa não vamos temos a despesa feita e em toda maneira avemos de fazer algũa guerra por serviço e homrra da fee a qual bem aparelhada temos em outra parte» (Biblioteca Pública de Évora-, Fundo da Manizola, cód. 177, fl. 28v).

Com efeito, em 1458 D. Afonso V seguiu para o norte de África com a armada que estava preparada para dar batalha os turcos. Aí conquistou Alcácer-Ceguer, 43 anos após a jornada de Ceuta (Costa, 2017, p.64).

Perante o exposto compreendem-se os motivos da Coroa portuguesa de ter aproveitado a embaixada enviada a Roma para aí realizar uma missão de espionagem. De acordo com Paulo Lopes, entre os finais da Idade Média e início da Moderna, Roma — e em especial a cúria papal — destacava-se como um centro privilegiado de informações a nível planetário. Pela Cidade Eterna passavam informações extremamente importantes a nível político e geo-estratégico. Por tal motivo, era vital que os príncipes daquele tempo mantivessem representantes capazes de os informarem a respeito das grandes decisões tomadas na Europa. Adiante, Paulo Lopes cita Yves Renouard a respeito de Roma: «era o centro postal internacional mais activo da Itália e, sem dúvida da Europa: a novas políticas militares, comerciais, espirituais aí convergiam e daí partiam por todas as vias. A Cidade Eterna era o centro mais bem informado das novas de toda a Cristandade, e aquele donde elas eram difundidas em todas as direcções» (Lopes, 2013, pp.669-670).

 

IV. A espionagem como crime de lesa-majestade: o caso das Ordenações tardo-medievais portuguesas

Por fim, chegados ao quarto ponto deste artigo constata-se um dilema. Se, por um lado, a espionagem medieval era uma atividade «indissociable de l’art de la guerre, de la diplomatie, de la police et du commerce» (Denécé, et al., 2011, p.9), por outro, era «objet d’une fort condamnation d’orde moral, este de plus assimilé à une forme de lèse-majesté» (Péquignot, 2017, p.651). Com efeito, este tipo de delito inspira-se, de acordo com as Ius-historiografia, na Lex Iulia Maiestatis, do Direito Imperial Romano (Leite, 2006, p.84).

Assim, de acordo com o texto dessa lei, podemos destacar alguns pontos-chave, tais como: i) «Proximum sacrilegio crimen est, quod maiestatis dicitur»; ii) «Maiestatis autem crimen illud est, quod adversus populum Romanum, vel adversus securitatem eius committiur; quo tenetur is, cuius opera dolo malo consilium initum erit […]». Quer dizer, Ulpiano informa que o crime de lesa-majestade (delito equiparável a um sacrilégio) enquadra todos os atos que sejam perpetrados contra o povo romano ou contra a sua segurança e, é por ele responsável o indivíduo que os executou. Adiante, é explicitado que a sentença aplicável a um crime desta natureza é a pena de morte (cf. Corpus Iuris Civilis, Digesto, Livro XLVIII, tít. IV, n.º 1, §1 e n.º 3).

O legislador medieval português, tal como os seus congéneres de além-fronteiras, ao recuperar o Direito Romano adaptou-o, obviamente à realidade do seu tempo. No caso concreto do crime de lesa-majestade, podemos encontrar referências nas Ordenações Afonsinas (Livro V, tít. 2) —mais tarde, este delito foi transposto para as Ordenações Manuelinas (Livro V, tít. 3) e para as Ordenações Filipinas (Livro V, tít. 6)—, cujos preceitos estão em perfeita «harmonia com os ensinamentos dos sabedores antigos, isto é, dos glosadores e comentadores do Direito Imperial Romano» (Caetano, 2000, p.556). Na prática, o crime de lesa-majestade, à luz da legislação medieval portuguesa resulta de uma ofensa ou traição contra o rei, família real, altas dignidades palatinas ou o Real Estado do monarca. Segundo Caetano (2000, pp.556-563), está-se na presença de uma lei criminal que se desenvolve com largueza e minúcia e que se desdobra em dois graus. Tem-se, assim os crimes de primeira-cabeça, relacionados com ataques diretos ao Rei e a todo o seu Real Estado. A sentença para este tipo de crimes é a pena de morte. Posteriormente surgem os crimes de segunda-cabeça, relacionados com ataques indiretos ao rei ou ao seu Real Estado, como por exemplo a falsificação de moeda. A pena a aplicar seriam castigos corporais (cf. Ordenações Afonsinas, Livro V, tít. 2).

Apesar de se estar perante leis muito detalhadas, as Ordenações apresentam-se lacunares em diversos pontos, o que levou com frequência, à necessidade de encontrar alternativas para esses vazios legais. Uma dessas lacunas pode ser observada precisamente, no ponto da lesa-majestade por não prever a possibilidade do delito ser praticado por um estrangeiro, como é o caso de um embaixador-espião. Devido a situações deste género, em que haja ausência de legislação específica para determinados casos, as Ordenações estipulam o recurso ao direito subsidiário. Noutras palavras, na ausência de leis próprias do reino, costume ou estilo de Corte, devia aplicar-se uma fonte de direito subsidiário. A primeira opção era recorrer ao Direito Imperial Romano ou ao Direito Canónico e no caso de ambos serem discordantes em relação à questão judicial, ou o Imperial incorrer em pecado, aplicava-se o Canónico. Caso contrário, o juiz optaria pelo Direito Romano. Mas as opções não ficavam por aqui. Posteriormente, se ambos os Direitos fossem omissos, o juiz deveria observar as glosas de Acúrcio e as opiniões de Bártolo. Por fim, e se nenhuma das hipóteses anteriores solucionasse o caso, recorria-se ao arbítrio do Rei, tornando-se a sua decisão Jurisprudência para casos semelhantes que, eventualmente pudessem surgir no futuro (cf. Cruz, 1955, pp.412-413; Costa, 1960, pp.32-33; Hespanha, 1982, pp.501-502).

O motivo dessa elevada consideração em relação ao Direito Romano, tem que ver com o facto deste estabelecer prescrições muito firmes a respeito de inúmeras situações entre as quais a imunidade diplomática (Péquignot, 2017, p.422). Ou, como diria Garrido (1964, p.79):

«En el Digesto disponemos de un material inagotable de casos, de contorversias y de principios jurídicos, como nunca ha existido otro igual. Si mas que lógica el Derecho es experiencia, no puede pensarse en una experiencia jurídica parecida a la que nos ofrecen las Pandectas. El jurista de hoy [como da Idade Média] que abra y lea el Digesto, sin mas preocupaciones críticas e históricas, quedaré sorprendido por el manancial de soluciones, aplicables incluso a muchos de sus problemas».

Recuperando o foco em relação à possibilidade do crime de lesa-majestade ser praticado por um diplomata estrangeiro, são muitas as questões e dúvidas encontradas, em parte por se estar perante uma problemática pouco ou nada estudada pela Historiografia medieval e pela Ius-historiografia. Essa lacuna historiográfica pode-se comprovar, por exemplo ao folhear o The Historiography of Medieval Portugal. Nesta publicação do IEM, a despeito, entre outros dos excelentes estudos relacionados com a criminalidade e poder central medievais, deparar-se com um total silêncio a propósito do Direito Medieval português tout court, bem como em relação a este tipo de assuntos (Homem, 2011, pp.179-207; Duarte, 2011, pp.499-511). Por certo, este ineditismo é compreensível devido à crónica falta de dados empíricos que cerceiam certos estudos históricos. Conforme ensina Luís Miguel Duarte, após a consulta de dezenas de milhares de documentos, não subsistem elementos que apresentem verdadeiros crimes de lesa-majestade no Portugal medieval. Não obstante, devido à inexistência de sentenças, processos judiciais, entre outras decisões de índole criminal para o Portugal medieval (cf. Duarte, 1993, p.329 e 2007, p.64), não se pode afirmar que tais delitos não tenham ocorrido, apesar das probabilidades serem reduzidas.

Assim sendo e meditando um pouco no que se expôs nas linhas anteriores, há uma questão que se impõe. Se um embaixador/diplomata fosse flagrado ou acusado da prática de espionagem seria um crime de lesa-majestade?

Alguns historiadores e ius-historiadores portugueses alertam para os perigos de tomar ao pé da letra o texto das Ordenações. Com efeito, a regulamentação dos crimes de lesa-majestade não configura uma exceção, esta apresenta certas nuances que devemos ter em consideração. Para Leite (2006, p.83), «o delito de traição ao rei ou o crime de lesa-majestade não podem ser conotados com uma «ideia de lealdade». Pelo contrário, simbolizavam um veemente ataque à maiestatis, ou seja, àquilo que atualmente convencionamos denominar por soberania. Observação pertinente e que converge com a perspetiva do setecentista Freire (1966, p.101). Para este erudito, em todos os Estados —ainda que o termo seja anacrónico para o período medievo — o poder supremo denominava-se de majestade, ou seja, maiestatis, quer ele residisse num só indivíduo, em vários ou no povo. Posto isto, qualquer dolo que fosse perpetrado contra esse «sumo poder, desprezando-o ou injuriando-o» seria considerado um crime de lesa-majestade. Em relação ao crime de traição o autor refere que é um «crime de alta traição, aquele com ânimo hostil maquiar, seja o que for, contra a Pátria [ou contra] o Príncipe».

Continuando no plano da dedução, pois não se dispõe de dados empíricos, se um embaixador/diplomata incorresse num crime de lesa-majestade por práticas de espionagem, os contornos penais seriam semelhantes aos aplicáveis a portugueses. Saliente-se que, em tese, seriam semelhantes e não idênticos, devido à imunidade que escudava os embaixadores (v.g., Ordenações Afonsinas O-, Livro III, tít. 29, §5). Ainda assim, essa prerrogativa do Ius Gentium não era totalmente eficaz. Repare-se que, terminada uma embaixada a imunidade caducava e o diplomata podia, então, «ser citado [em Corte], como qualquer outro do Povo», o que podia levar as autoridades a aguardar precisamente por este momento para procederem à detenção (Ordenações Afonsinas, Livro III, tít. 2, §2). Por outro lado, a lei medieval portuguesa também apresentava algumas lacunas que permitiam ao juiz contornar as prerrogativas inerentes a um diplomata: «se elle for demandado por alguuã auçaõ temporal, que naõ sendo a esse tempo ententada, pereceria de todo seu direito, porque em tal caso poderá ser demandado ate que esta auçaõ seja perpetuada» (Ordenações Afonsinas O-, Livro III, tít. 2, § 2). À luz da Ordenação esse indivíduo poderia ser processado judicialmente por crime de lesa-majestade e punido com a pena de morte por atentar contra o Real Estado do monarca (Ordenações Afonsinas, Livro III, tít. 20, §3 e Livro V, tít. 2).

Mas seria mesmo assim? Há muitas outras variantes que se devem considerar. Na primeira metade do século XIX, Rocha (1843, pp.126-127), ao analisar detalhadamente o Livro III da Ordenação constatou que «poucas são as regras, que se não esgotem em excepções, em razão da infinita variedade de Juizes, causas, e pessoas privilegiadas […]». De facto, está-se perante uma observação pertinente e que poderá ajudar a esclarecer a ausência de dados empíricos relacionados, por exemplo com embaixadores/diplomatas acusados de crimes de lesa-majestade.

Em estudos anteriores ficou demonstrado que os diplomatas eram homens privilegiados e poderosos. Eles eram a voz do seu príncipe nas Cortes estrangeiras, ainda que a sua atuação estivesse profundamente condicionada por instruções prévias. Na verdade, eles eram uma extensão da potestas régia, como Philipe Contamine evidencia num dos seus trabalhos: «l’ambassade représente le roi. Pour un temps limité et un objet détermine, elle agit au nom du roi, exerce l’une ou l’autre de ses prérogatives et engage sa persone. Pout cette raison elle a droit aux égards dus à la personne» (Autrand & Contamine, 2005, pp.114-115). Com efeito e, considerando que o rei tinha a faculdade de «assumir o papel de criado de Direito» (Silva, 1985, p.167), a pena podia ser relevada. Isto é, tratando-se de um diplomata estrangeiro o rei poderia anular a sentença de lesa-majestade, principalmente por três motivos. Primeiro, demonstrava magnanimidade. Segundo, salvaguardava o bom relacionamento bilateral. E terceiro, caso um espião seu fosse capturado poderia exigir tratamento idêntico por parte dessa Corte.

 

V. Conclusões

Estudar a espionagem medieval é um desafio para qualquer historiador. Essa dificuldade resulta da pouca literatura produzida e da grande escassez documental. Escassez essa motivada, obviamente por questões de secretismo político-diplomático.

Mas, se por um lado, o estudo da espionagem esbarra numa série de limitações, por outro assume-se de grande importância para a Historiografia. Da espionagem dependia, em grande medida, a diplomacia das diversas entidades políticas medievais, fossem elas grandes ou pequenas potências. Os dados recolhidos no exterior pelos agentes ao serviço da espionagem eram fundamentais para o relacionamento bilateral entre os diversos príncipes. Assim, com base nesses informes, eram planeadas sólidas estratégias, não só do ponto de vista diplomático, mas também argumentativo e contra-argumentativo. A Historiografia tem salientado, e muito bem, que uma das formas mais eficazes de se obter esse tipo de informações era por intermédio das embaixadas medievais. Como evidenciado anteriormente, estas afirmavam-se como o principal veículo da espionagem político-diplomática daquele tempo. A título meramente ilustrativo destacaram-se duas missões diplomáticas que encobriram atos de espionagem. A primeira foi liderada pelo castelhano Alfonso de Cartagena a Portugal e a segunda pelo português D. João Fernandes da Silveira a Roma. Ambos os diplomatas foram responsáveis pela recolha de informações altamente confidenciais e estratégicas e delas resultaram importantes decisões políticas, diplomáticas e militares como tivemos oportunidade de observar.

A atuação de Cartagena e de Silveira, à semelhança da de muitos outros, desenvolveu-se ao abrigo da imunidade diplomática —inspirada no Ius Gentium do Direito Romano. Contudo, devido ao aproveitamento ilícito deste instituto jurídico para a execução de atos de espionagem, as autoridades de diversas entidades políticas passaram a encarar os embaixadores/diplomatas com alguma desconfiança, passando assim a vigiá-los e a limitar o contacto com as populações locais. 

Apesar das desconfianças que pairavam sobre os diplomatas, a imunidade diplomática estava presente na legislação de inúmeras entidades políticas, como é o caso das Ordenações portuguesas. No entanto, convém salientar que a presença deste instituto jurídico na legislação local, em certos casos não passava de um apontamento meramente teórico. Na prática podia não ser respeitado, como se viu por exemplo, na detenção do embaixador português Martim Mendes de Berredo em França, local onde viria a falecer após cerca de doze meses de cárcere.

Com efeito, como Péquignot, entre outros historiadores referem, se um embaixador fosse suspeito de praticar atos de espionagem seria acusado de crime de lesa-majestade e, por conseguinte, condenado à morte. Contudo, em Portugal a situação parece ter sido um pouco distinta.

O crime de lesa-majestade, inspirado no Direito Imperial Romano, estava contemplado na legislação portuguesa e previa pena extremamente dura para os acusados. Ainda assim, não foi possível detetar quaisquer referências a verdadeiros crimes de lesa-majestade, nem tão-pouco acusações judiciais formais contra diplomatas que pudessem ter praticado atividades de espionagem em Portugal. No entanto, conhecem-se alguns atos de espionagem praticados contra o Reino português. De vários casos que se podem citar, apresentaram-se as investidas da espionagem internacional à Casa do Padrão (Lisboa), entre 1450-1490, e as missões dos diplomatas-espiões Ruy Díaz de Vega e Alfonso de Cartagena. As autoridades portuguesas não tiveram conhecimento desses atos? Tiveram e alguns indivíduos foram julgados, mas os documentos não chegaram até à atualidade? Ou tiveram conhecimento e optaram por não os julgar, de forma a obter contrapartidas idênticas, mas também para respeitar a imunidade diplomática e não criar atritos bilaterais com as entidades políticas que enviaram os espiões? Apesar de não se ter resposta para estas questões subsistem as interrogações levantadas, para que em futuros trabalhos possam ser solucionadas, por nós ou por outros investigadores interessados no tema.

 

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Notas

  1. Recentemente, os Serviços Secretos espanhóis decifraram um conjunto de cifras do rei Fernando o Católico (García Calero & Fernandéz-Miranda, 2018).
  2. Para uma melhor compreensão acerca do Ius Gentium, Siete Partidas, entre outros assuntos cf. Péquignot (2015).

  3. A respeito dos dados biográficos de D. João Fernandes da Silveira cf. Marinho, 2017, vol. 2, pp.75-82.

  4. De acordo com Humberto Baquero Moreno, Martim Mendes de Berredo também se encontrava em Itália em serviço diplomático. D. Afonso V enviou-o a Nápoles, ao encontro de Alfonso V de Aragão e Nápoles para aí debater questões relacionadas com cruzada aos turcos. Contudo, «não encontrou a mais pequena simpatia pela empresa. Martim Mendes de Berredo deparou com o mesmo clima de indiferença por toda a Itália, que se mostrava profundamente desunida» (Moreno, 1973, p.737).