I. Introdução

Na espécie humana, não existe vida no isolamento. Viver é uma busca constante por alimento e segurança. O agrupamento tornou-se fundamental, de início em famílias, em clãs, tribos ou pequenas comunidades, acabando por evoluir para as gigantescas sociedades hodiernas.

Uma vida cómoda e tranquila foi, desde o início, um objetivo das sociedades. Mas as paixões mais perversas do Homem limitaram sempre o alcance desse objetivo. A ganância, a cobiça, a avidez, a inveja, a cólera, a raiva, o desejo de vingança, enfim, os interesses próprios, trouxeram miséria e indigência aos mais fracos que sentiram a necessidade de proteção. O controlo social tornou-se fundamental ao desenvolvimento das comunidades. Nas tribais, era o patriarca que detinha esse controlo e o poder de sancionar os transgressores. Mais tarde, estabeleceram-se leis gerais, limitativas da liberdade originária do Homem, na medida do indispensável para assegurar o objetivo comum da sociedade: a ordem geral.

A liberdade do Homem conflitua, por isso, com a submissão à tradição ou à lei. Esse conflito cria resistências em alguns membros da comunidade organizada. Enquanto uns se submetem voluntária e espontaneamente à lei, outros resistem em cumpri-la. Para remediar esse mal, foi necessário criar um instrumento de força para obrigar os desobedientes. Destas raízes mais longínquas, nasce a instituição policial, a par dos mecanismos informais de controlo social — a família, a vizinhança, a Igreja, a escola, o trabalho, as associações culturais ou recreativas.

É natural pensarmos na Polícia como a invenção mais brilhante para o controlo formal do indivíduo e da sociedade. Mas, na verdade, esse brilhantismo não sobreviveria por muito tempo sem a criação dum expediente pouco lembrado, esquecido até, neste esquema global do controlo social: a identificação pessoal. Sem um sistema funcional que permita estabelecer a identidade de cada membro das sociedades mundiais, seria difícil à Polícia (e à Justiça) — para não dizer impossível — cumprir a missão para que foi criada.

É por isso com boas razões que reservámos, neste canto da Revista Politeia, um espaço para o estudo da identificação pessoal, esse instrumento jurídico de que pouco se fala, mas que marca presença no dia-a-dia da atividade policial.

O que seria se as pessoas não tivessem que se vincular a um nome, a uma identificação pessoal? Como funcionaria a Polícia e o sistema de Justiça sem o registo da identidade de cada pessoa?

Como é bom de ver, a criação dum registo civil e dum registo criminal marca uma etapa fundamental para o controlo das sociedades contemporâneas. Nestas escassas linhas do nosso estudo, abordaremos a história do registo civil e a sua relevância no mecanismo global de controlo social, deixando a análise do registo criminal para outra oportunidade.

 

II. A identidade: manifestações e conceitos

O controlo social não pode fazer-se convenientemente sem um sistema que permita individualizar os cidadãos. Determinar “quem é quem” constitui a base fundamental de qualquer modelo de organização política e social, sobretudo nas sociedades complexas.

Nos tempos mais recuados, a Coroa não manifestava qualquer preocupação com a identificação das pessoas estabelecidas em território português. As questões relativas à identidade resumiam-se à atribuição de títulos, tratamentos e distinções de nobreza, punindo-se severamente quem usurpasse insígnias de armas ou títulos honoríficos que lhes não pertencessem. Mas quanto ao uso de nomes e apelidos, não havia proibição alguma. Qualquer pessoa era livre de mudar de nome. Desde o Direito Romano que a mudança de nome só era proibida aos escravos e aos que nisso tinham intenção de fraude. Em França, existiu por muito tempo a mesma liberdade, e a primeira tentativa legal para a sua restrição, operada em 1755, foi sujeita a larga contestação e, por isso, não chegou a ser executada.

Por regra, o nome de batismo (normalmente escolhido de entre a lista dos santos venerados pela Igreja) mantinha-se ao longo de toda a vida, por motivos de fé e de religiosidade, sendo mais comum mudar-se o apelido. Mas eram apenas os católicos que não pensavam sequer em renegar o nome com que haviam entrado no grémio dos fiéis. Quanto aos não-católicos e excomungados, a fé não era um obstáculo.

Com a Revolução Francesa de 1789, a cisão entre as instituições civis, políticas e religiosas teve um impacto sério na identificação pessoal dos cidadãos. A laicização e ausência de toda a sanção religiosa e moral fez com que cessasse o costume de serem escolhidos os nomes dos santos venerados pela Santa Sé. O desvario revolucionário, a imaginação e a irreverência levou a que se tomassem os nomes de seres inanimados, animais, plantas. Nomes como Liberdade (Liberté) ou Igualdade (Égalité) também não eram excluídos perante a ausência de qualquer catálogo, com o fundamento de que “a todo o cidadão era lícito mudar de nome, contando que se conformasse com as formalidades prescritas na lei” (Ferrão, 1857, p. 247).

É por entre estas desordens que em 1794, a Convenção Nacional estipulou que ninguém pode usar outro nome senão o que consta do assento de nascimento, impondo-se o princípio da imutabilidade do nome.

Em Portugal, não existia legislação que obrigasse ao recenseamento da população. Só a Igreja detinha um mecanismo para o registo dos féis. A Coroa só tomou consciência da importância deste registo depois do terramoto do primeiro dia de novembro de 1755, que deixou Lisboa num profundo caos, com inúmeras barracas a serem construídas nos arredores da cidade, em terrenos públicos e particulares, onde se acomodaram os desalojados, os viajantes e se escondiam os criminosos. A desordem e a criminalidade forçaram a criação de uma Polícia — a Intendência Geral da Polícia da Corte e do Reino —por Alvará de 25 de junho de 1760, para restabelecer a paz e a tranquilidade pública. Uma das principais medidas concebidas foi a de atribuir a cada juiz ou corregedor do crime dos Bairros da capital, a tarefa de criar um “livro de registo, ou matrícula, em que descreva todos os moradores do seu Bairro, com exata declaração do ofício, modo de viver, ou subsistência de cada um deles; tirando informações particulares, quando for necessário, para alcançar um perfeito conhecimento dos homens ociosos e libertinos, que habitarem no distrito da sua Jurisdição”.

Trata-se de uma iniciativa significativa, mas a falta de um registo civil organizado e extensivo a todo o Reino ditou o seu fracasso. Procurando colmatar algumas fraquezas do sistema, o Código Penal de 1852 passou a punir com pena de prisão ou multa “aquele que tomando um falso nome tentar subtrair-se de qualquer modo à vigilância legal da autoridade pública”, nos termos do artigo 233.º. No Capítulo II, Título IV, Livro II, do mesmo Código, com a epígrafe “Usurpação do estado civil e matrimónios supostos e ilegais”, o artigo 336.º punia quem, dolosamente, usurpasse o estado civil de outrem.

Os vocábulos identidade ou identificação são raramente referidos nos documentos mais antigos. Há uma razão para isso: são conceitos recentes na história da civilização.

A palavra identificação não aparece no Vocabulario Portuguez e Latino de Raphael Bluteau (1713), uma obra monumental composta por vários tomos, muito completa, o que nos leva a concluir que este termo não existia à época.

Mais tarde, no seu Diccionario da Lingua Portugueza (1789), acrescentado por António de Moraes Silva, o conceito de identidade é apresentado como “a qualidade de ser a mesma coisa, e não diversa”, ou seja, com o sentido de idêntico. A palavra identificação continuava por definir. Mas em 1836, Francisco Solano Constâncio, no Novo Diccionario Critico e Etymologico da Lingua Portugueza, define a palavra ‘identificar’ como “reconhecer pelo mesmo indivíduo, v. g. – os autores do crime”, o que nos leva a supor que o conceito ‘identificar’ parecia estar perto de cunhar o de identificação, ainda por inventar.

Encontramos a palavra identificação, pela primeira vez, no Decreto de 11 de junho de 1908, autorizando o abono dos serviços extraordinários na secção de identificação do Posto Antropométrico Central.

É com a chamada estadística, como assim era conhecida o que hoje designamos por estatística, que se desenvolve a ideia segundo a qual o profundo conhecimento da população permite melhor dirigi-la e governá-la. Os processos de individualização e de registo dos vários elementos da sociedade (número de habitantes, categorizando-os em faixa etárias e sexo, tipologia e número de lares, ruas, praças, becos, travessas, fontes, chafarizes, etc.), a par do saber estatístico, através de censos e inquéritos constituem importantes instrumentos disciplinares para a construção das sociedades modernas. O poder político percebe que a combinação da Ciência com o Estado é um poderoso auxiliar para a governação, possibilitando a criação de um território padronizado em determinadas áreas de intervenção estadual e a disciplina da população, através do seu adestramento (Garnel, 2007, p. 254).

A identificação dos elementos constituintes da sociedade torna-se, por isso uma prioridade para o Estado, em particular a partir do Liberalismo, o primeiro sistema eleitoral da história do parlamentarismo constitucional português que exigia um recenseamento da população.

Para identificar uma pessoa de forma a que não possa ser confundida com outra, é necessário que se lhe reconheça a singularidade. É aqui que entra o conceito de identidade. A identidade permite que uma pessoa possa ser reconhecida de entre outras. A identidade pessoal é única, define um indivíduo, um e um só.

O conceito de identidade pessoal comporta várias significações, que se agrupam em duas áreas fundamentais: cognoscitiva (interior ou subjetiva) e física (exterior ou objetiva). É o estudo desta última que nos interessa para chegarmos ao conceito de identificação civil.

Para criar um sistema de registo da individualidade, é necessário estabelecer um certo número de critérios para a sua definição. Associados ao nome e à filiação, são instituídos critérios para a fixação da identidade em registo, como a idade, a altura, a cor dos olhos, a fotografia, a dactiloscopia, a antropometria. O registo destes dados constituem dados pessoais, isto é um conjunto de informações que fornecem a descrição da própria identidade. A esta passagem da identidade de uma pessoa para um sistema de registo que reconhece a sua individualidade, dá-se o nome de identificação pessoal, comportando um sentido técnico e administrativo.

Os sistemas de identificação empreendidos ao longo dos últimos dois séculos — primeiro criminal e só mais tarde civil — procuraram sempre corresponder a certas características essenciais à sua sobrevivência e funcionalidade: a unicidade (permitir uma identificação única para cada indivíduo); a perenidade (manter o registo ao longo do tempo); a imutabilidade (a identificação pessoal deve manter-se inalterada, não obstante a atualização do registo individual face às alterações fisionómicas) e a praticidade (o arquivo e pesquisa do registo deve ser prático e funcional). Vejamos, resumidamente como evoluiu este sistema em Portugal. O estudo ficaria incompleto sem esta visão histórica do estado da arte, tão importante para a compreensão global do atual mecanismo da identificação civil.

 

III. O registo da identificação pessoal: Dos assentos paroquiais ao registo civil

Recuando aos alvores da nacionalidade, verifica-se que, até ao século XIX não existia qualquer método, sistema ou processo administrativo que permitisse estabelecer e registar a identificação dos indivíduos que compunham a sociedade ou as comunidades locais. As questões relativas à identidade dos indivíduos, à identificação pessoal, ao registo civil ou ao cadastro criminal não faziam parte das preocupações da Coroa, ou pelo menos não tinham ainda sido descobertas pela engenharia política. É certo que, nos primeiros séculos de vida, o território português era recortado por pequenos lugares e povoações, na maior parte entregues à nobreza ou ao clero, e por vilas acasteladas e fortificadas onde um alcaide-mor se encarregava do governo e da administração da segurança e justiça da população residente, pelo que esta conjuntura não ditava a necessidade de recenseamentos.

Nos dias que correm, registar um nascimento e atribuir uma identificação civil com o devido registo nas conservatórias criadas para o efeito, é uma formalidade banal e não se pensa sequer nos fundamentos desta medida. A verdade, porém, é que o procedimento de identificação e registo dos cidadãos de uma sociedade tem, por detrás um propósito fundamental bem definido: estabelecer um procedimento de controlo social e de administração geral, mormente civil, eleitoral, tributária e jurisdicional.

A necessidade de instituir um sistema de registo dos habitantes de determinado território — ao nível nacional ou local, municipal — fez-se sentir (tardiamente, cremos) e foi-se vincando na mesma proporção da evolução e complexidade da vida em sociedade.

O crescimento das grandes cidades, a massificação demográfica, o fluxo de estrangeiros em portos marítimos e a marginalidade e barbaridade quase epidémicas das sociedades medievais estimularam a descoberta e a instituição de (novas) medidas de segurança e justiça mas, ao que tudo indica, não proporcionaram a invenção de um sistema de registo civil que permitisse apaziguar a ineficácia e, até impotência do Estado em lidar com a multiplicação da criminalidade e barbárie.

Até às Ordenações Filipinas, a Coroa seguiu apenas a tradição de estabelecer métodos para distinguir as várias classes sociais e identificar as pessoas que seguiam religião distinta da cristã. Na estratificação da nobreza, atribuíam-se insígnias de armas e títulos honoríficos aos ricos-homens, infanções, cavaleiros e escudeiros, para que “suas famílias e nomes se não confund[issem] com as dos outros que não tive[ssem] iguais merecimentos”, punindo-se severamente quem usurpasse brasões de armas ou punindo-se severamente quem usurpasse brasões de armas ou apelidos. O mesmo princípio estendia-se às insígnias das Ordens Militares, proibindo-se o uso de hábito das Ordens de Cristo, Santiago e Avis por parte de quem as não integrava. Os mouros e os judeus eram identificados através de sinais: os judeus com carapuça ou chapéu vermelho; os mouros com uma lua de pano vermelho de quatro dedos, cosida no ombro direito, na capa e no pelote. Por altura das Ordenações de D. Afonso V os judeus eram já obrigados a trazer um sinal de seis pontas ao peito, de cor vermelha, colocado acima da boca do estômago, de forma bem visível, uma imposição herdada de uma Lei datada de 1429, do Rei D. João I, Mestre de Avis.

A Coroa preocupava-se, assim, com a identificação social, honorífica, racial e religiosa, mas não com a identificação pessoal no sentido que hoje lhe damos. O único arrolamento que se fazia restringia-se à população masculina e tinha uma finalidade militar: a organização das hostes.

Depois da Idade Média, mais propriamente a partir do século XVI, iniciou-se um registo do estado civil dos indivíduos, por ação dos párocos da Igreja Católica que procuravam manter um registo do ciclo de vida dos seus fiéis, sob a forma de assentos paroquiais, com o objetivo de estabelecer prova dos estados de família ligados a certos sacramentos (batismo e matrimónio) e documentar o cumprimento dos sufrágios fúnebres: “quando nasciam para a fé, pelo batismo; quando se uniam, homem e mulher, para constituir família, pelo matrimónio; quando partiam da vida terrena, chamados por Deus, pela morte”.

Os registos de casamentos realizados nas paróquias, iniciados na primeira metade de Quinhentos tornaram-se obrigatórios a partir da XXIV Sessão do Concílio de Trento, realizada em 11 de novembro de 1563, cujo Capítulo I do Decreto de Reforma do Matrimónio dispõe que “Tenha o Cura [pároco, sacerdote] um livro, em que se escrevam os nomes dos casados e das testemunhas, o dia e o lugar em que se celebra o matrimónio: o qual diligentemente guardará consigo”, o que foi depois mandado executar pela Bula do Papa Pio IV do mesmo ano. O Concílio Tridentino nada providenciou, porém, acerca dos assentos de batismo e óbitos.

Apesar da prescrição sacral de registo obrigatório dos matrimónios, a sua aplicação não foi universal nos países da Cristandade e a existência dos registos paroquiais só foi efetivamente estabelecida com a imposição do Ritual Romano, pelo Papa Paulo V, em 17 de junho de 1614 que alargou a obrigatoriedade ao registo dos óbitos em livro próprio (Ferreira, 2005, pp. 31-32).

As Constituições Diocesanas da Igreja Lisbonense de 25 de agosto de 1536, promulgadas pelo Infante D. Afonso, cardeal de S. João e S. Paulo e arcebispo de Lisboa, já obrigavam ao registo dos batismos e casamentos na área desta Diocese.

Os assentos de batismos, casamentos e óbitos, registados nos livros paroquiais estavam a cargo dos párocos, motivo pelo qual cada livro só inclui assentos de uma paróquia ou freguesia. Não obstante, estes censos permitiam que se mantivesse, em certa medida, um registo de identificação pessoal, bem como um espetro sociológico e demográfico da população local, embora não coincidente com a residente, por não contemplar fluxos de pessoas, mormente a comunidade emigrada ou desterrada. Os fiéis de outras religiões e os cristãos que não recebessem os sacramentos católicos também não constavam dos registos.

A lei civil havia sempre deixado aos cuidados da Igreja a instituição da família e o registo dos seus acontecimentos fundamentais. Mas o estabelecimento destes registos diocesanos que importavam à Igreja, regulados por aquelas e por outras Constituições Diocesanas que posteriormente foram publicadas, passou a interessar também para as relações administrativas. A Coroa reconheceu que a prática da Igreja relativamente aos católicos era útil e vantajosa, pelo que procurou torná-la extensiva a todos os indivíduos. Além do mais, a Revolução Liberal de 1820 permitiu que se realizassem as primeiras eleições em Portugal, pelo que o recenseamento da população — em particular, dos que gozassem de capacidade eleitoral ativa — era fundamental.

Tal como nasceu em França com a Revolução de 1789, o registo civil brotou em Portugal com a nossa Revolução Liberal em 1820. Com a emergência da corrente filosófica do racionalismo por toda a Europa, a substituição dos dogmas das religiões pelo culto civil da razão era inevitável. O registo da população e das principais fases de vida da família (nascimento, casamento e óbito) seguiu idêntico caminho, tornando-se também civil.

Mas o Estado não se limitou a querer criar um registo civil. A realização desse registo devia obedecer a princípios jurídicos uniformes que certificassem a sua regularidade e fiscalização.

É com a Reforma administrativa e judiciária de Mouzinho da Silveira que a organização do registo civil conheceu a primeira providência legislativa, dispondo no Relatório que antecede os Decretos de 16 de maio de 1832 (n.ºs 22, 23 e 24) que:

“O nascimento, o casamento, a adopção, a separação dos cônjuges, a maioridade, a naturalisação, a morte — são de ordem publica, porque estabelecem a ordem pessoal e domestica, os actos que legalisam o estado das pessoas na família, e por consequencia na Sociedade, são da competencia da administração, estabelecida especialmente para formar, e garantir a ordem publica”.

Com esta Reforma que dividiu o Reino de Portugal e Algarves e Ilhas Adjacentes em províncias, comarcas e concelhos, as questões relativas ao registo civil passaram para as mãos dos provedores dos concelhos, a quem incumbia a redação e conservação do Registo Civil. A lei definia o registo civil como sendo “a Matricula geral de todos os Cidadãos, pela qual a Authoridade Publica attesta, e legitima as épocas principaes da vida civil dos individuos a saber, os Nascimentos, Casamentos, e Obitos”.

Nos termos da lei, o registo devia ser feito em livro especial, rubricado pelo provedor, cuja escrituração pertenceria a um escrivão. A importância e autenticidade dada a estes registos fez com que a Administração Pública passasse a desvalorizar e desconsiderar qualquer certidão que não tivesse origem nos livros oficiais. Na verdade, esta decisão traduz uma medida de laicização dos registos paroquiais.  O § 3.º do artigo 69.º do Decreto n.º 23 de 16 de maio de 1832 prescreve que “Em todos os Actos Publicos, em que de futuro se requeiram Certidões de Casamentos, Nascimentos, ou Obitos, só terão fé as extrahidas do Registo Civil”.

Com a vitória definitiva do liberalismo em 1834, os liberais, então predominantes, entendiam que a Reforma de Mouzinho da Silveira era demasiado autoritária ao procurar alterar profundamente as antigas organizações e substituindo-as por um novo paradigma — o administrativo —, separado por inteiro do poder judicial.

Através da Carta de Lei de 25 de abril de 1835, o sistema provincial (com as prefeituras) foi então substituído pela divisão administrativa do território português em distritos, encabeçados por um governador civil e em concelhos, dirigidos pelos administradores de concelho. Por sua vez, os concelhos estavam divididos em freguesias, administradas pelos comissários de paróquia. Apesar desta alteração de paradigma, o registo civil manteve-se em tudo igual, com exceção das atribuições e funções dos antigos provedores passarem para os administradores de concelhos. A própria redação do corpo de lei é, na essência, idêntica (cfr. Decreto de 18 de julho de 1835).

Apesar da enérgica regulamentação legislativa, a instituição dum registo civil foi mal sucedida, pelo que o Governo de Sua Majestade viu-se na necessidade de renunciar à sua organização.

Com a Revolução vitoriosa Setembrista de 9 de setembro de 1836, que marca um corte com a política Cartista, é publicado o Código Administrativo de 1836 que veio redefinir os órgãos e as atribuições das divisões administrativas. Os administradores de concelho mantiveram a tarefa de “redacção do Registo Civil, pelo qual a Authoridade Publica attesta, e legitima as épocas principais da vida civil dos indivíduos, a saber: O Nascimento, Casamento e Obito”.

Quanto à forma de elaboração dos assentos, o Código Administrativo de 1836 é progressista pelo modo como descreve, com minúcia, todo o processo de registo civil prescrito nos artigos 132.º a 149.º.

A lei impunha que o registo fosse feito em três livros separados. No primeiro seriam lançados, em modelo próprio os assentos de nascimento, no segundo os de casamento e no terceiro os de óbito. Um quarto livro serviria para registar as procurações e lançar os autos (declarações e certidões).

Os assentos de nascimento deviam ser lançados no prazo de oito dias depois da criança nascer, a qual devia ser presente ao administrador ou ao regedor de paróquia no caso das freguesias rurais mais distantes da cabeça de concelho, diante de duas testemunhas. Os recém-nascidos abandonados — normalmente deixados nas rodas de expostos — deviam ser apresentados ao administrador de concelho ou ao regedor de paróquia por quem os achasse, a fim de ser lavrado auto de declarações, registado no livro de registo de procurações e autos.

No caso de falhas ou transgressões das regras estabelecidas para a redação do registo civil, a lei prescrevia sanções para os administradores de concelho, regedores de paróquia e seus escrivães: “(…) pena pecuniária de dez, até cem mil réis, e serão responsaveis por seus bens ás partes interessadas pelos damnos, e prejuizos que lhes causarem. Os que não tiverem bens para pagarem a condemnação que lhes fôr imposta, sofrerão tanto tempo de prisão, quanto corresponder á condemnação, calculando-se mil réis por cada dia de prisão”.

O processo de fiscalização judicial e a severidade das sanções deixa transparecer a importância dada ao assunto do registo civil. Segundo cremos, a ânsia de fazer vingar um rigoroso sistema de registo civil estaria relacionada com o processo de secularização e, até de laicidade que se iniciara com a vitória do liberalismo em 1834. Os agentes políticos pretendiam pôr fim aos registos paroquiais ou, pelo menos à sua eficácia perante as organizações administrativas. Procurava-se, por um lado, a exclusão ou ausência da religião da esfera pública (da Administração), mas sem deixar de reconhecer a importância da religião para a vida social. Por outro lado, o Estado Liberal pretendia diminuir o poder da Igreja Católico enquanto estrutura do Antigo Regime.

Não valeu o esforço do legislador que prescreveu com detalhe o modo de execução dum registo civil. As normas que regulavam a sua institucionalização não passavam de letra morta. O abandono desse registo parecia certo, tanto que a Carta de Lei de 29 de outubro de 1840 que alterou e revogou em parte as disposições do Código Administrativo português de 1836, nem sequer dele se ocupou. Na verdade, parece que se adivinhava a dificuldade de execução do registo civil, porquanto o artigo 255.º do Código Administrativo de 1836 prescreve que:

“O Registo do Estado Civil continuará a ser feito como até agora pelos respectivos Parochos, em quanto o Governo não publicar os modelos para o mesmo Registo, e não determinar a epocha em que geralmente em todo o Reino elle deve passar para as Authoridades Admnistrativas, na fórma que se ordena neste Codigo; porem, os Parochos são obrigados a enviar aos Regedores de Parochia a relação dos Baptismos, Casamentos, e Obitos havidos na sua parochia, em todos os mezes”.

Com a publicação do Código Administrativo de 1842, o registo civil manteve-se nas mãos do administrador do concelho, nomeado “Official do Registo Civil”. Este novo Código deixou de regulamentar esta matéria, optando por remetê-la para regulamento especial que nunca viria a ser publicado, o que demonstra que o assunto não era urgente e, até mesmo não se reconhecia a necessidade dum registo civil.

Como é bom de ver, apesar de todas as codificações e tentativas enunciadas, a organização do registo civil municipal encontrou muitas dificuldades e tudo indica que as medidas legislativas não brotaram. O período de grande conturbação político-social dos segundo e terceiro quartéis da época oitocentista explica o insucesso.

Disso nos dá conta o Decreto de 19 de agosto de 1859, no qual se reconhece a vantagem da manutenção do registo paroquial. No seu relatório, o cartista Mártens Ferrão, Ministro e Secretário de Estado dos Negócios Eclesiásticos e de Justiça assegura que, seja ou não estabelecido o registo civil, “não pode ser extinto o registo paroquial, único competente para certificar a existência de certos atos das exclusivas atribuições eclesiásticas, que têm efeitos decisivos na constituição da família e, por ela, em toda a sociedade civil”.

Não obstante reconhecer a vantagem em manter-se o registo paroquial (procurando aproveitá-lo para o registo civil, ao corrigir as suas principais deficiências), Mártens Ferrão não deixa de se referir ao estado lastimoso em que se encontrava esse registo, reduzindo os seus defeitos à falta de unidade de forma (resultante da falta de uniformidade de formulários utilizados pelas diferentes Constituições Diocesanas), à imperfeição de execução (na deficiência das declarações, na irregularidade das emendas e aditamentos, na verificação e guarda dos documentos comprovativos), na falta de fiscalização da boa execução do registo e, finalmente, na deficiência da sua fiel e segura conservação. Convencido da necessidade e urgência em restabelecer os registos paroquiais, afirma que “cada ano de negligência compromete o futuro de uma geração”, o que o levou a lançar as bases de uma importante reforma.

Na sequência duma Circular de 12 de julho de 1860, os prelados consultados davam, em geral bom testemunho da execução do Decreto de Mártens Ferrão nas suas dioceses.

Em junho de 1867 é publicada legislação de monta: o primeiro Código Civil português, a Carta de Lei que cria o imposto geral de consumo e a Lei de Administração Civil de Mártens Ferrão. No dia 1 de janeiro de 1868 eclodiu uma forte contestação popular — que ficou conhecida por Janeirinha — como forma de protesto ao imposto de consumo e à reforma administrativa do território. A estabilidade do Movimento Regenerador em funções governativas deu lugar, uma vez mais, a um período de grande instabilidade política.

A Lei de Administração Civil, aprovada pela Carta de Lei de 26 de junho de 1867, depressa foi revogada através do Decreto de 14 de janeiro de 1868, que a declarou sem efeito, restabelecendo o Código Administrativo de 1842 e demais legislação anterior, e anulou a última divisão administrativa do território. Com a Lei de Administração Civil pretendia-se organizar um registo civil, tanto que no seu artigo 481.º se dispunha que “É o governo auctorisado para organisar o serviço do registo civil em todo o reino”. Mas não passou disso mesmo, duma intenção que não chegou — nem teve tempo — a sair da letra de lei.

O Código Civil de 1867, o primeiro do Reino de Portugal, deu um passo importante na regulação da vida civil e das relações privadas. No entanto, a sua exequibilidade dependia da publicação de alguns regulamentos e o do registo civil era um deles. Por exemplo, a instituição dum registo civil era essencial para a prova da filiação legítima (artigos 114.º a 118.º), tanto que, por ter-se consciência da sua inexistência, admitia-se na sua falta, qualquer documento autêntico ou outro escrito ou até simples testemunhas; para a legitimação dos filhos nascidos antes do matrimónio (sendo nisto fundamental o assento de casamento — artigos 119.º a 121.º); ou para o assentamento do matrimónio, em especial o dos contraentes que não professavam a religião católica, cujos casamentos eram feitos pela forma instituída na lei civil, perante o oficial de registo civil (o administrador de concelho do domicílio dos contraentes), pelo que não podiam ser inscritos no registo paroquial (artigos 1056.º, 1057.º e 1075.º a 1085.º).

A necessidade de um registo público instituído faz-se notar no próprio Código, nos artigos 2441.º a 2444.º, que regulam a prova de nascimentos, casamentos e óbitos. Começa-se por estabelecer que “os factos de nascimento, casamento e óbito provam-se pelo registo público instituído para esse fim”, mas, ciente desta utopia, o legislador apressa-se a dizer que “não havendo registo, ou não se achando registados os actos mencionados, ou não o estando na devida forma, poderá admitir-se qualquer outra espécie de prova”, o que confirma que o estado do registo civil era lastimoso, o registo paroquial era deficiente e incompleto, muitas pessoas não estavam sequer registadas (em particular os súbditos não-católicos e os estrangeiros) e outras, embora estando-o os seus registos continham incorreções ou falhas graves.

É neste contexto que o Código Civil ordena a instituição dum registo civil para os nascimentos, casamentos, óbitos e para o reconhecimento e legitimação dos filhos, estabelecendo regras minuciosas para a sua execução, muitas das quais inspiradas nas normas do Código Administrativo de 1836 e do Decreto de 19 de agosto de 1859. A obrigação de comunicar um nascimento para registo era repartida de forma escalonada: o pai; na sua falta, a mãe; no impedimento desta, o parente mais próximo do recém-nascido; na falta deste, o facultativo ou a parteira que tivesse assistido ao parto; em último lugar, o dono ou dona da casa onde ocorresse o nascimento, quando este sobreviesse fora do domicílio da mãe; ou ainda, se o nascimento acontecesse em estabelecimento público, a pessoa que tivesse a cargo a sua direção ou administração. Até para os expostos e recém-nascido abandonados existiam regras estritas: para os primeiros, a obrigação do registo cabia ao estabelecimento onde a exposição tivesse ocorrido (v. g., as Irmandades da Misericórdia, os Conventos); para os segundos, o registo cabia aos achadores. A preocupação em não deixar escapar o registo dos nascimentos dos súbditos está patente nestas disposições legais, podendo dizer-se que crescia a preocupação em conseguir estabelecer um cadastro pormenorizado da população residente em Portugal.

Arriscamos dizer que esta preocupação estaria relacionada com a crescente apreensão da Coroa em descobrir e estabelecer a identidade dos criminosos ou mais do que isso, dos insurretos que conspiravam contra o Poder. Por esta razão, cadastrar a população foi sempre — a par das benévolas intenções da boa Administração para a ordem pública — um fortíssimo instrumento desejado há muito pelos governos mais despóticos. Registar a identidade dos cidadãos, criar um registo civil e criminal, foi e continua a ser uma poderosa ferramenta de controlo social.

A conturbação social e política não dava tréguas à Administração Pública. Mas o projeto para a criação dum registo civil resistia e nunca foi totalmente abandonado.

Por Decreto de 21 de julho de 1870, continuou em marcha a reformulação administrativa do Reino com a aprovação dum novo Código Administrativo. A criação do registo civil não encontrou espaço neste código. O inciso III do artigo 281.º dispõe que compete ao administrador do concelho “O registo civil”, sem mais. Não é prescrita qualquer regulamentação, demonstrando a falta de interesse em estabelecer tal registo, o que é compreensível face ao período de conturbação política que se vivia à época.

Mas este Código saldanhista depressa foi revogado pela Carta de Lei de 27 de dezembro de 1870, que releva o Governo da responsabilidade pelas medidas de natureza legislativa que promulgou desde o mês de maio, mantendo algumas dessas providências e revogando outras, tendo sido o caso do Código Administrativo de 1870. Desta forma, foi repristinado o Código de 1842.

Os sucessivos Códigos Administrativos reservaram sempre uma referência ao registo civil, ainda que residual, o que nos leva a pensar que, embora o clima político e social não favorecesse o seu desenvolvimento, acreditava-se que a sua incubação seria fundamental para as gerações futuras. Tomás Ribeiro que em finais de 1878 chegou a assumir interinamente a pasta dos negócios eclesiásticos e de justiça, diz num relatório:

“Se pois não era reclamada esta innovação por nenhuma urgente necessidade, n’aquella epocha onde está o motivo que levou o governo de então a sanccional-a, e em tao boa monção que nenhuma lei posterior ousou esquecel-a? Seria a intuição do futuro? Seria em parte”.

Não deixa de ser curioso que Tomás Ribeiro, então Ministro da Marinha e Ultramar entre 29 de janeiro de 1878 e 1 de maio de 1879, no gabinete regenerador presidido por Fontes Pereira de Melo, tenha tido a preocupação em tomar em suas mãos o assunto do registo civil durante o curto período em que esteve com a pasta dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça. Tendo assumido a gestão interina deste ministério entre 15 de novembro e 13 de dezembro de 1878, não deixa de ser surpreendente ou inesperado que a 28 de novembro, treze dias após assumir o cargo, tenha dado prioridade a uma matéria quase esquecida. É certo que os trabalhos preparatórios do regulamento então publicados nesta data estariam já num estado avançado, mas o relatório de Tomás Ribeiro foi necessariamente elaborado neste curto período em que tomou posse dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça e o seu conteúdo reflete um certo anseio em dar seguimento à regulamentação legal necessária para a instituição do tão almejado registo civil.

Em maio de 1878, o novo Código Administrativo limitou-se a fixar normas relativas às despesas com os registos. Ou seja, até à intervenção de Tomás Ribeiro nada havia mudado e as regras prescritas pelo Código Civil, já com onze anos, continuavam a jazer letra morta.

Com a sua intervenção nesta matéria, Tomás Ribeiro não criou o registo civil. Estava bem ciente das dificuldades para a sua implementação (situação que não esconde no seu relatório) e, por isso optou por enveredar por um sistema de complementaridade do registo paroquial que, entretanto já havia sofrido um bom arranjo e ajustamento com a operação legislativa de Mártens Ferrão em 1859. Os registos diocesanos funcionavam de forma satisfatória e, face às conjunturas da época, não havia razões para desprezá-los. Assim, o dito Ministro propôs ao Rei D. Luis que:

“(…) fica o registo civil para os não catholicos desde já estabelecido nas administrações dos concelhos, e continua para os catholicos a ser escripturado pelos parochos até que o poder legislativo tenha providenciado. Os não catholicos, Senhor, são poucos e residem todos ou quasi todos nas grandes cidades; é-lhes facil o accesso á administração do concelho; a grande maioria, a quasi totalidade nos concelhos rurais é de catholicos: fôra demasiadamente duro obrigal-os a tão penosas jornadas”.

Para justificar a sua opção afirma que o registo civil não é nem deixa de ser civil em razão da classe do funcionário a quem se confia, rematando — em jeito de retaliação contra as vozes discordantes — com a convicção de que “o registo paroquial foi sempre, como é hoje, para todos os efeitos, considerado civil nas tradições e nas leis”.

O Decreto de 28 de novembro de 1878 passou a regulamentar o registo civil para os súbditos portugueses não católicos, com efeitos a 1 de janeiro de 1879, para os nascimentos, casamentos, óbitos e para o reconhecimento e legitimação dos filhos, segundo as normas do Código Civil. A regulamentação seguiu a linha do Código Administrativo de 1836 e do Decreto de 19 de agosto de 1859, estabeleceram-se multas para as pessoas que faltassem à obrigação de declarar um nascimento ou óbito e criaram-se modelos de assentos para a execução do registo civil.

Considerando o regresso ao registo paroquial, os Códigos Administrativos de 1896 e de 1900 deixaram de se reportar a este assunto, limitando-se a prescrever uma norma relativa às despesas tidas com a compra dos livros necessários para os registos paroquiais.

Com a implantação da República no dia 5 de outubro de 1910 a separação entre a Igreja e o Estado era inevitável. Três dias depois da proclamação republicana é publicado um decreto que institui a expulsão dos jesuítas e das ordens religiosas e o encerramento dos conventos. Numa altura em que a monarquia e o clericalismo se confundiam, o processo de laicização do Estado e da sociedade era ineludível, trazendo consequências várias: o ensino da doutrina cristã foi abolido a 18 de outubro; o núncio apostólico abandonou Lisboa a 20 de outubro; a 3 de novembro é promulgada a Lei do Divórcio; e por Decreto de 25 de dezembro, com a promulgação das “Leis da Família”, o casamento passa a constituir um contrato com validade exclusivamente civil. Como é expectável, o registo paroquial não poderia sobreviver a tamanho golpe desferido contra a Igreja Católica. Abre-se, então um novo capítulo para o Registo Civil.

Durante a Primeira República, Afonso Costa avança com a Lei da Separação do Estado das Igrejas e empreende uma série de obras inéditas e importantíssimas para a evolução do Estado contemporâneo: cria o Registo Civil no ano de 1911, o Arquivo de Identificação em 1918 e a emissão dos primeiros bilhetes de identidade em 1919.

É através do Código de 18 de fevereiro de 1911 que, finalmente, se consegue impor um registo civil para todos, destinado a “fixar autenticamente a individualidade jurídica de cada cidadão e a servir de base aos seus direitos civis”. Este propósito do registo civil marca uma rutura dogmática com o registo paroquial que supria a sua falta: doravante, o registo civil assume uma natureza puramente jurídica, desvinculada de qualquer feição clerical e religiosa. A primazia do registo civil sobre a versão religiosa é, agora uma realidade sem retorno.

O Código prescreveu a obrigatoriedade de entrega de todos os livros do registo paroquial para uso nas Conservatórias do Registo Civil, sendo essa a razão por que, na atualidade, esses livros se encontram nos acervos dos Arquivos Distritais.

 

IV. Liberdade (anonimato) e identidade (identificação): equilíbrio necessário para a garantia do díptico Segurança e Justiça

Todos nascemos com uma identidade própria, genética, biológica, física, cognoscitiva. Em pequenas comunidades isoladas essa identidade é suficiente para nos individualizar e identificar. Mas em sociedades cosmopolitas, é impossível saber-se “quem é quem” sem a transposição dessa identidade para um registo de identificação pessoal e civil.

Como pudemos verificar foram precisos quase oito séculos para estabelecer um sistema de identificação civil no nosso país e sujeitar todas as pessoas a um registo de identificação obrigatório.

Viver em sociedade implica aceitarmos esse registo, ainda que isso nos custe ceder uma parte da liberdade individual. Registarmos a nossa identificação significa renunciarmos ao anonimato, ou seja, a uma parte da nossa liberdade originária. Esse é o primeiro preço a pagar para se entrar na sociedade, em prol dum sistema de controlo social indispensável.

A boa ordem social não se assegura com o anonimato e a segurança da população e do próprio Estado passa, em larga medida, pelo controlo da identidade dos cidadãos. A ordem pública, o interesse geral e a paz social exigem que, nas relações de estado civil dos cidadãos entre si ou com o Estado, haja verdade e autenticidade.

A identificação civil transformou-se num poderoso instrumento jurídico de controlo social, deixando toda a gente à sua mercê no quadro do sistema da Justiça. O véu do anonimato cai quando o indivíduo integra o tecido da sociedade civilizada, havendo boas razões para isso: a ordem social e a segurança.

Como é evidente, continua a ser garantida uma certa proteção constitucional do anonimato, extraída do cruzamento do direito à identidade pessoal com o direito à reserva da intimidade da vida privada (cfr. artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa). Ninguém está obrigado a revelar a sua identificação pessoal, nem perante as autoridades públicas, a não ser quando haja razões legais que imponham um dever de identificação. Num Estado de direito é a lei que estipula quando, como e com que fundamentos as autoridades podem exigir a identificação a um cidadão, por exemplo, quando seja suspeito da prática de um crime (artigo 250.º do Código de Processo Penal) ou de uma contraordenação (artigo 49.º do Regime Geral das Contraordenações, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro).

Fora destes casos legalmente previstos, outros há em que o anonimato é traído, embora numa vertente diferente. Por exemplo, num negócio jurídico de compra e venda, ao fornecermos o número de identificação fiscal para a emissão de uma fatura, estamos de certa forma a revelar uma parte da nossa identificação pessoal. Ou ao passarmos num sistema de cobrança automática de portagem, com utilização de um identificador de veículo. Ou ainda, ao renunciarmos ao direito à imagem em espaços privados munidos de um sistema de videovigilância.

A cedência dessa fatia da liberdade individual — que é o anonimato — é compensada por um aumento da segurança coletiva, imprescindível ao exercício livre dos demais direitos e garantias fundamentais. É a segurança pública que, lutando todos os dias contra a lei do mais forte, mantém os abutres afastados dos membros mais fracos da sociedade.

Os níveis de segurança alcançados graças ao sistema de registo da identificação civil acabam por nos conduzir à conclusão paradoxal — um pouco ao jeito do paradoxo de Zenão — de que, afinal renunciar ao anonimato não retira nada à liberdade, antes pelo contrário. Deste modo, se o Homem cede, por um lado, parte da sua liberdade pessoal para integrar-se e viver em sociedade, submetendo-se a uma autoridade protetora dos interesses coletivos, por outro lado, a segurança que lhe é proporcionada permite-lhe recuperar ou compensar a liberdade perdida, sendo necessária para o exercício dos seus direitos, liberdades e garantias pessoais.

Com este remate podemos dizer que o registo da identidade torna-nos, na verdade, mais livres. O anonimato absoluto só beneficiaria os membros mais fortes da sociedade, deixando que os mais fracos servissem de presa a inúmeros abutres.

Aqui chegados, é então natural colocarmos uma outra questão: se o registo da identificação civil favorece e protege a sociedade, porque não aumentar o seu potencial, com a criação de um sistema que, a todo o tempo e espaço, permita saber “quem é quem? Imagine-se que todas as pessoas fossem, à nascença, identificadas e registadas através de um chip implantado no corpo que permitisse o registo (protegido, não livremente acessível) de todos os seus movimentos, um registo permanente do ius ambulandi de cada cidadão ao qual as autoridades judiciárias poderiam aceder para fins de prevenção e investigação criminal. Se, por hipótese, essa tecnologia fosse expansível a todos os países, o mundo seria mais seguro? Seríamos mais livres, no sentido de viver sem medos, sem receios dos malfazejos? Seria possível, desta forma, erradicar o crime?

Não cremos. O crime — melhor, o que em cada época é definido como crime — é um elemento epistemológico da sociedade politicamente organizada e como tal, é insuscetível de desarreigamento. Nem mesmo (ou nem sempre) perante a certeza de vir a ser identificado e condenado, o malfazejo se abstém de cometer o crime que concebeu na sua mente e lhe quis dar execução. A experiência judiciária e penitenciária das sociedades mais implacáveis na aplicação da Justiça demonstrou já que o temor das penas, por mais duras que sejam, não é suficiente para demover os malfeitores.

Não obstante, o sistema de registo civil não estagnou por aqui. Como vimos, este registo que serve diligentemente os mecanismos formais de controlo social — mormente a Polícia e a Justiça — é muito recente. A sua evolução mal acabou de começar. O Registo Civil tem pouco mais de um século. O que está para vir, só a futuridade o dirá.

 

V. Conclusões

O registo da identidade é essencial a uma sociedade organizada que pretende implementar um sistema de justiça penal eficiente. Nas sociedades complexas a necessidade de distinguir o ser humano nas suas relações sociais tornou-se imprescindível. Todo o ser humano tem uma identidade, única e irreplicável, diferenciando-se desde logo pelos traços físicos: altura, peso, cabelo, olhos, características particulares, etc. Mas transpor esta identidade pessoal para um registo de identificação pessoal foi sempre um desafio.

A identificação pessoal é, sem dúvida um poderoso instrumento de controlo social e um precioso utensílio de prevenção e investigação no âmbito da lei criminal. Por essa razão, estabelecer a identificação de uma pessoa tem sido, desde os tempos remotos, um objetivo indelével das sociedades políticas. A tarefa nunca foi fácil, em especial quando a par de um sistema de identificação pessoal se pretende criar um expediente para o registo criminal.

Em Portugal, o processo de registo da identidade das populações através do nascimento ou do casamento civil é muito recente, tendo completado o seu centésimo ano há pouco. Há quatro ou cinco gerações reinava, de certo modo, o anonimato com todas as consequências que daí advinham em matéria de Polícia, Segurança e Justiça. As pessoas não tinham um bilhete de identidade com o qual se pudessem identificar perante as autoridades públicas, pelo que era difícil, para estas atestar a autenticidade dos dados fornecidos pelos suspeitos ou pelos administrados.

O sistema de Registo Civil ocupa um espaço importante na dialética dos eixos que enformam o controlo social formal. Sem este sistema, e na falta de um outro alternativo, seria difícil, por um lado, estruturar uma sociedade em termos de engenharia política e administrativa, e por outro lado, manter a ordem, a segurança, a tranquilidade e a paz social.

Referências Bibliográficas

Afonso, João José Rodrigues (2008). O Regime Legal da Identificação – Reflexões Sobre o Instituto da Detenção para Efeitos de Identificação. In Estudos de Homenagem ao Professor Doutor Artur Anselmo (pp. 361 a 392). Coimbra: Almedina.

Almeida, Cândido Mendes de (ed. e anot.). (1870). Codigo Philippino ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal. Recopiladas por mandado d’El-Rey D. Philippe I. 14.ª edição. Livros I a V. Rio de Janeiro: Tipografia do Instituto Filomático.

Alvará de 25 de junho de 1760 (cria a Polícia da Corte e do Reino). In Collecção das Leis, Decretos, e Alvarás del Rei Fidelissimo D. José I. Desde o ano 1750 até o de 1760. (1797). (pp. 455-460). Tomo I. Lisboa: na Officina de António Rodrigues Galhardo.

Bluteau, Raphael (1713). Vocabulario Portuguez e Latino. Tomo III, s. v. «Identidade». Coimbra: No Real Colégio das Artes da Companhia de Jesus.

Bluteau, Raphael (1789). Diccionario da Lingua Portugueza (reformado e accrescentado por António de Moraes Silva). Tomo I. Lisboa: Na Officina de Simão Thaddeo Ferreira.

Código Penal Português (1852).

Código do Registo Civil (1911).

Constâncio, Francisco Solano (1836). Novo Diccionario Critico e Etymologico da Lingua Portugueza. Paris: Na Officina Typographica de Casimir, ed. Angelo Francisco Carneiro.

Constituição da República Portuguesa (1976).

Ferrão, Francisco A. F. da Silva (1857). Teoria do Direito Penal, Aplicada ao Código Penal Português, Vol. V. Lisboa: Imprensa Nacional.

Ferreira, Francisco Messias Trindade (2005). Viver e Morrer no Território do Antigo Concelho de Eixo (1590-1910). Braga: Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho. Tese de doutoramento em Demografia Histórica (policopiada).

Garnel, Maria Rita Lino (2007). Vítimas e Violência na Lisboa da I República. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra.

Palmeirim, Luis Augusto (1881). Estatística de Portugal: População no 1.º de Janeiro de 1878. Lisboa: Imprensa Nacional.

 

Notas

  1. Ver, por exemplo, o Livro V, Título XCII das Ordenações Filipinas.
  2. Cfr. artigo 1.º da Lei de 6 Fructidor, Ano II, do Calendário Revolucionário francês (23 de agosto de 1794):

    «Art. 1er. Aucun citoyen ne pourra porter de nom ni de prénom autres que ceux exprimés dans son acte de naissance : ceux qui les auraient quittés seront tenus de les reprendre.

    II. Il est également défendu d’ajouter aucun surnom à son nom propre, à moins qu’il n’ait servi jusqu’ici à distinguer les membres d’une même famille, sans rappeler des ramifications féodales ou nobiliaires.

    III. Ceux qui enfreindraient les dispositions des deux articles précédens, seront condamnés à six mois d’emprisonnement et à une amende égale au quart de leurs revenus. La récidive sera punie de la dégradation civique.»

  3. A Nova Reforma Penal, aprovada por Decreto de 14 de junho de 1884, deixou cair aquela norma, mas não deixou de condenar certos crimes em virtude do uso de falso nome ou falsa qualidade (cfr. Artigo 451.º, §1.º).

  4. O primeiro recenseamento sistemático de toda a população do Reino foi feito no ano de 1864, fixando-se em 3.829.618 habitantes. Mas este recenseamento não era acompanhado de um Registo Civil que comportasse todos os dados pessoais identificativos como hoje existe. No primeiro dia de janeiro de 1878, um novo recenseamento anunciou 4.550.699 habitantes de facto (comparativamente à população legal de 4.160.315 habitantes). Para uma visão pormenorizada deste tema, cfr. Luis Palmeirim (1881).

  5. Para definir o conceito de identidade, Raphael Bluteau (1713) junta estas duas áreas (cognoscitiva e física), referindo que “a alma racional unida com o corpo humano faz um só homem”.

  6. Cfr. Título XCII do Livro V das Ordenações Filipinas.

  7. Cfr. Título XCIII do Livro V das Ordenações Filipinas.

  8. Cfr. Título XCIV do Livro V das Ordenações Filipinas.

  9. Cfr. Título LXXXVI do Livro II das Ordenações Afonsinas.

  10. Cfr. Mostra Documental “Arquivos Paroquiais: traços do nascer, viver e morrer de um povo”. Exposições da Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada, realizadas entre 17-11-2014 e 15-01-2015. Vide www.culturacores.azores.gov.pt.

  11. Cfr. Decretos e Determinações do Sagrado Concílio Tridentino (1564), p. 22.

  12. Com interesse, veja o relatório que precede o Decreto de 19 de agosto de 1859, de João Mártens, e o relatório de Tomás António Ribeiro Ferreira, inserto em rodapé no Decreto de 28 de novembro de 1878.

  13. Hoje, estes dados só estão ao alcance dos recenseamentos gerais da população e da habitação, operações estatísticas de caráter exaustivo que visam essencialmente conhecer o número de pessoas que, em dado momento habitam um determinado território, a caracterização da população, a família, o levantamento do parque habitacional e a tipificação das condições de habitabilidade.

  14. Cfr. artigo 69.º, § 1.º, do Decreto n.º 23 de 16 de maio de 1832.

  15. Cfr. relatório que precede o Decreto de 19 de agosto de 1859, de João Mártens.

  16. Cfr. artigo 131.º do Código Administrativo de 1836.

  17. Cfr. artigo 235.º do Código Administrativo de 1836.

  18. No Relatório que antecede o Decreto de 17 de maio de 1832, Mouzinho da Silveira reconhece mesmo que “a Religião é uma necessidade pública”. A neutralidade do Estado em matéria religiosa só se tornou efetiva em 1911, com a Lei da Separação do Estado das Igrejas.

  19. Cfr. relatório que precede o Decreto de 19 de agosto de 1859, de Mártens Ferrão.

  20. Ibidem.

  21. Cfr. artigos 2445.º e seguintes do Código Civil de 1867.

  22. Cfr. artigos 2459.º a 2461.º do Código Civil de 1867.

  23. Cfr. relatório de Tomás Ribeiro, inserto em rodapé no Decreto de 28 de novembro de 1878.

  24. Diz-nos: “Comparando o nosso estado actual com o que era em epochas anteriores, resulta que o estabelecimento geral do registo civil é hoje consideravelmente mais difficil do que o fôra nos primitivos tempos da sua creação”.

  25. Cfr. relatório de Tomás Ferreira, loc. cit. Naquela época a maioria das pessoas não tinha cavalo ou uma carruagem para se deslocar à sede da administração concelhia. Os povos rurais que viviam nos limites do concelho, longe dos serviços públicos, teriam de sujeitar-se a penosas jornadas para tratar do registo civil. É por essa razão que Tomás Ribeiro optou por manter o registo paroquial para estas pessoas.

  26. Cfr. relatório de Tomás Ferreira, loc. cit.

  27. Cfr. artigos 1.º a 3.º da Lei do Casamento como Contrato Civil (N.º 1 das Leis da Família), aprovada pelo Decreto de 25 de dezembro de 1910.

  28. Cfr. artigo 1.º do Código do Registo Civil de 1911, publicado no Diário do Governo n.º 41, de 20 de fevereiro, pp. 653-665. Negrito nosso.