I. Introdução

O conhecimento científico transmitido pela atividade pericial assume primordial importância na eficiência da investigação criminal moderna. O processo criminal, sendo um processo de aplicação de um direito de ultima ratio com foco na compressão de direitos fundamentais do cidadão, deve pautar-se pela observância de todos os pressupostos atinentes à realização de um processo justo e equitativo nos termos preceituados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, na Convenção Europeia dos Direitos Humanos, na Constituição da República Portuguesa e em todo o normativo do instituto jurídico-processual penal.

Desde logo, a investigação criminal científica assume-se como expoente máximo neste desiderato fundamental, não podendo continuar refém de estratégias e métodos obsoletos e de um passado em que o investigador era o centro do saber. Hoje o saber científico está na atividade pericial que permite conhecer e descobrir mais com menos dados informacionais. Por outras palavras, a ciência ao serviço da investigação criminal dentro de padrões éticos e de eficiência processual.

O combate à criminalidade moderna, grave e altamente organizada, numa vertente de complexidade extraordinária e instrumentalizada pela utilização de ferramentas tecnológicas cada vez mais evoluídas, impõem à perícia um esforço capaz de responder às atuais exigências da investigação criminal. O juízo técnico-científico assume-se como elemento preponderante na decisão judiciária e judicial em toda a fase do processo. Os critérios de admissibilidade da perícia devem servir todos os sujeitos processuais, numa perspetiva de equidade, ou seja, a investigação por um lado e a ampla defesa por outro. As perícias em geral e a lofoscópica em particular assumem-se como elo charneira e estrutural na condução processual pelo que, a sua assertividade formal e material devem ser o objetivo de todos os operadores judiciários.

Deste modo este é um tema com elevada pertinência na estreita medida em que não há processo criminal sem intervenção pericial e a investigação criminal, atualmente, não atinge a descoberta da verdade material sem a perícia ao seu serviço. Deste modo, os operadores judiciários devem acautelar este tipo de prova de valor reforçado e programar os atos processuais numa vertente de sincronia entre a operacionalidade do investigador e o devido acompanhamento científico ao nível probatório, algo que não está concretizado como veremos adiante. Além da pertinência elencada é objetivo neste trabalho demonstrar que o sistema pericial na investigação criminal não se encontra devidamente consolidado e, por tal facto, aquilatar da capacidade da perícia em geral e da lofoscópica em particular, responderem aos anseios da justiça.

Nesta decorrência e desiderato a atingir definimos o problema da investigação e este tem substância, desde logo, verificando-se que o atual estado da arte, nem sempre dá a resposta fundamental para o desenvolvimento de uma investigação criminal com base científica, moderna e eficiente, pelo que breviatatis causa espera-se que este estudo teórico possa dar resposta ao problema em duas dimensões. A primeira é a da concetualização da perícia de âmbito geral e a sua aplicabilidade prática na investigação criminal. Será que o regime em vigor responde às necessidades processuais? Estão os operadores judiciários cientes da mais-valia do conhecimento científico na investigação criminal? Numa segunda dimensão e mais recente inquietação, consubstancia-se na aplicabilidade do regime da perícia lofoscópica. Complexo e ainda pouco estudado, pretendemos saber se este responde às necessidades da investigação criminal? Que fraquezas o mesmo acabou por fomentar? Será que uma política legislativa júris condendo resolveria os problemas limitadores de toda a capacidade pericial nesta área científica? Tentaremos dar resposta ao problema aqui formulado, bem como a outras contingências colaterais sonegadoras de um conhecimento científico à investigação criminal.

Refira-se, numa visão preditiva de objetivos acima lançados, que a perícia na investigação criminal, hodiernamente, assume-se como fator influenciador da descoberta da verdade material e da realização da justiça, pelo que a reestruturação aqui proposta resolverá a problemática que diagnosticamos e conduzirá a um elevado patamar de eficiência da capacidade pericial, quer ao nível geral quer das perícias lofoscópicas particularmente, pois estas assumem-se como as principais na identificação de suspeitos. Assim esta temática tem primordial importância para a Polícia de Segurança Pública, como principal órgão de Polícia Criminal na investigação criminal em Portugal, bem como para um Sistema de Segurança Interna, que em muito contribui para toda a atividade processual do Sistema de Justiça. É, pois, curioso que em Portugal a realização do grosso volume processual penal seja levada a cabo pelos órgãos de polícia criminal do Sistema de Segurança Interna.

 

II. Método

O método utilizado para o presente estudo teórico consistiu na pesquisa bibliográfica sobre esta temática, na análise do pensamento doutrinário autêntico, utilizando o processo de raciocínio dedutivo, partindo das premissas e teorias existentes para a busca de uma verdade particular. Raciocínio de conceção racionalista das ciências, cujas conclusões que se pretendem obter com este tipo de pensamento, uma vez encontradas são incontestáveis, o que nos permitiu focar-nos em realidades factuais e tidas como verdadeiras e que, aplicando um raciocínio coerente nos levou a conclusões também elas verificadas como válidas.

Utilização também do raciocínio ou processo indutivo como operação mental da apreciação de factos particulares que depois de tratados e associados deram lugar à respetiva teorização. Para este exercício lógico-indutivo foi dada especial atenção à aplicação prática, por parte de todos os operadores judiciários, das capacidades periciais existentes, as suas vulnerabilidades e inconsistências. Por fim a aceitação pelas autoridades judiciárias do novo regime da perícia lofoscópica e fotográfica bem como a incapacidade sentida, pelo perito em responder com eficiência às necessidades da investigação criminal.

O pensamento crítico como elemento metodológico foi utilizado para testar todas as soluções de resposta ao problema de investigação. O método, ao longo da investigação, respondeu às necessidades desta e a sua utilização mostrou-se perspicaz e imprescindível.

 

III. A Finalidade da Perícia como Ferramenta Probatória de Valor Reforçado na Investigação Criminal Moderna

    A. A Perícia no Exigente Sentido Probatório do Processo Criminal

Hodiernamente existe, porventura maior consciencialização por parte de todos os intervenientes processuais e cumulativamente até, por toda a sociedade da cada vez maior importância do papel que a perícia tem na prossecução de um processo criminal, que se quer o mais transparente possível e, ao mesmo tempo, sufragado por todos os interesses dos seus sujeitos processuais e demais participantes. Torna-se importante verificar do estado da arte nesta matéria e, desse logo dissecar o regime jurídico da perícia bem como as soluções que apresenta no âmbito do processo criminal equitativo e, outrossim as deficiências que lhe podem ser apontadas e que, de certa forma podem coartar os direitos dos sujeitos processuais, nomeadamente e mais cirurgicamente os que se encontram vinculados ao direito de defesa que nem sempre poderão estar salvaguardados.

A prova pericial assume hoje, mais preponderância no processo criminal, também por um lado, pelo facto da prova testemunhal, “deslizar pelos caminhos sinuosos dos interesses ocultos, do medo, das cumplicidades e da falta de consciência cívica” (Gonçalves & Alves, p.179), pois cada vez mais as testemunhas, quer oculares, quer as demais podem eximir-se às diligências processuais e às implicações que tem na sua vida particular.

Fazem-no sem sequer verem melindrado o seu dever de cidadania como é o dever de testemunhar, já nem sequer atendendo à imperatividade legal que decorre da lei e as obriga à colaboração com a justiça. Há, portanto, uma decadência deste tipo de prova. Por outro lado, não se compara com a fiabilidade da prova produzida através da forma pericial, desde logo pela sua irrefutabilidade ser mais difícil do que propriamente a declaração de ciência emanada pela testemunha.

No combate à criminalidade moderna, quer em sede de investigação nas diligências de inquérito ou demais fases, quer mesmo, a posteriori na produção de prova em audiência e decurso de julgamento, “os operadores judiciários cada vez mais se socorrem de peritos especialistas que possam analisar e interpretar as provas disponíveis, sejam provenientes de material probatório técnico ou científico, ou as demais fontes de prova”, (Verdelho, 2008, p.19), que no entanto exijam uma análise e interpretação valorativa de tecnicidade e cientificidade.

Pese embora que esta necessidade não seja algo que aconteceu recentemente, pois as clássicas formas de perceber a causa da morte nos crimes contra a vida, começaram por ser preocupações do sistema de formação do direito quando se ministravam aulas de medicina legal. Neste sentido, também noutras áreas como a balista ou a escrita manual, foram desde sempre, preocupações que implicavam a necessidade de usar estes meios de entendimento e explicação dos factos, por quem possa percecioná-los por força dos especiais conhecimentos que possui ou da “extração de conclusões a partir de factos que somente podem ser averiguados e analisados em virtude dos especiais conhecimentos dos peritos” (Latas, 2006, p. 97) pelo que, não sendo uma ferramenta nova, hodiernamente torna-se cada vez mais numa essencialidade na condução do processo criminal equitativo, quer seja pelo facto de existir a necessidade de ajustar as novas realidades periciais a uma também nova realidade criminal, quer seja pelo facto de se tratar de prova rainha, atendendo ao seu estatuto dentro do processo criminal, pois que, diferentemente de outra prova, esta terá muito menos probabilidade de levar a um juízo e decisão desconforme com a verdade material. Será portanto, um melhor auxiliador do julgador que as demais formas de demonstração dos factos juridicamente relevantes. Como se disse, a nova criminalidade trouxe com ela renovadas precisões e acrescidas exigências à perícia criminal, na medida em que existe a “necessidade de introdução de novas áreas do saber na perícia criminal e, em simultâneo torna-se importante discutir a exigência de criação, ou não, de novos tipos criminais que possam conformar e criminalizar as diferentes formas de conduta criminosa e que, cuja compreensão, obriga a conhecimentos específicos” (Verdelho, 2008, p. 20).

Ademais toda esta exigência de adaptação às hodiernas realidades criminais, por parte da área pericial, existe também uma nova exigência e que é colocada aos operadores judiciários, pois se por um lado existe o recurso a peritos muito especializados em áreas excessivamente técnicas do saber, por outro passa a existir a incumbência de acompanhamento desses mesmos assuntos – ainda que de forma aligeirada – pelos operadores judiciários e mormente os titulares do inquérito nesta fase, bem como os juízes de instrução e julgamento nas seguintes, todos eles como principais manobradores e responsáveis pela tutela judicial da ação penal, caso contrário poderia cair-se em situações de total dependência cega das conclusões do perito, o que, de certo modo prejudicaria o processo criminal equitativo.

Neste conspecto, há a referir ainda que, através da perícia muitas das vezes acabam por apurar-se “factos novos e estes revelam ter bastante interesse para a decisão equitativa da causa e que, não fossem esses especiais conhecimentos técnicos, artísticos ou científicos, nunca, esses factos, chegariam ao processo” (Dias. 2005 p. 187).

Torna-se portanto, imperial refletir sobre estas questões que manifestam claramente, a possibilidade de uma subversão do sistema, no sentido em que “o núcleo da ação penal deixaria de estar sob a alçada das magistraturas, para passar a estar fortemente determinada pelos peritos criminais, isto é, para que a verdadeira decisão deixe de ser tomada pelo magistrado, para ser antecipada pelas conclusões do perito” (Verdelho, 2008 p.22).

A interceção entre o direito e a ciência na atividade de investigar é, no fundo a verificação da capacidade de a ciência influenciar o direito e a decisão justa. O modo como o direito acaba por ser influenciado pela ciência tem expoente máximo na forma como esta acaba por entrar na sala do tribunal. Tal acaba por se verificar por via das perícias (Calheiros, 2018 p.138) e que promoverá uma qualidade probatória, também muito em função daquilo que é a competência do perito ou mesmo das ferramentas que este tem para promover o laudo pericial. Nem sempre, como veremos adiante, estas ferramentas – sustentadas nos vários regimes jurídicos – estão à altura das necessidades que todos os sujeitos processuais acabam por ter.

Sabendo-se que, a nomeação do perito no atual regime da perícia não está confinada, puramente a entidades públicas que possam estar acima de toda a suspeita e independência, mais pernicioso se torna este conflito de interesses que poderá colocar em causa o processo equitativo.

Assim o legislador, ao longo dos tempos tem sentido preocupação com a importância da perícia, pelo que criou o Laboratório de Polícia Científica, o Instituto Nacional de Medicina Legal e também o Núcleo de Apoio Técnico na Procuradoria-geral da República. Por outro lado, o Código de Processo Penal (CPP) de 1987 criou apuradas regras no que à perícia diz respeito, sendo que este tema é dos mais extensos de todos os que à prova se referem, onde se podem verificar rígidas regras no que concerne às perícias médico-legais e mesmo na área da psiquiatria forense e psicologia criminal, deixando as demais perícias sobre regras e termos gerais, não havendo foco em concreto noutra área específica (Oliveira, 2008).

Muitos dos exames que são levados a cabo têm de tal forma contornos de complexidade e especificidade no formato em que são elaborados, que provavelmente deveriam ser tidos em linha de conta como perícias, o que implicaria a nomeação de perito e não de puro examinador, até porque muitos desses exames não são meras descrições de funcionamento ou arrumação da informação ali contida, mas, pelo contrário vão mais além e “exibem-se como juízos valorativos da envolvência, quer formal quer material de toda a prova neles contida” (Oliveira, 2008, p. 132), logo perícias e não exames.

    B. Admissibilidade da Perícia no Sistema Processual

O regime da prova pericial encontra-se consagrado no CPP, de onde decorre a génese de toda a temática da concetualização da perícia no processo criminal. Nos termos do artigo 151.º do mesmo diploma a perícia não encontra uma definição em concreto, no entanto este normativo refere quando é que uma perícia – por inerência a prova pericial – deve ter lugar e sendo assim, deve ser levada a cabo quando da necessidade de perceção ou apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos, o que permitirá, não só a valorização através de juízo pericial de determinado facto que é objeto dessa mesma perícia, como também “poderá permitir a descoberta de novos factos, que até então eram desconhecidos” (Dias, 2005, p. 187) das autoridades promotoras do processo e mesmo do perito.

A versão inicial do CPP não explicitava nem estabelecia qualquer critério para determinar a feitura de uma perícia, algo que era resolvido através da jurisprudência (Gonçalves, 2005), que considerava que a diligência deveria ser realizada sempre que se verificasse ser essencial para a descoberta da verdade. Hoje esta jurisprudência encontra-se, de certa forma fora do contexto trazido com a revisão de 2007 do CPP, pois que a Lei 48/2007 de 29 de agosto veio consagrar o critério da necessidade, pese embora o faça para as perícias cujo escopo é a averiguação sobre as características físicas ou psíquicas das pessoas (art.º 54.º n.º 3 CPP). No entanto alguns autores (e.g. Santos & Henriques, 2008, p. 1040) entendem que “através do mecanismo da interpretação extensiva se deve aplicar a qualquer perícia”. Pode aquilatar-se, portanto que, no atual sistema a realização da perícia tem amarras bem mais espartilhadas que no anterior, antes da reforma de 2007 (Albuquerque, 2009).

Em sede de audiência esta necessidade pode ser suprida quando o tribunal possuir esses conhecimentos técnicos necessários para poder aceder com clara perceção aos factos apresentados, (art.º 163.º n.º 2 do CPP), “Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência”. Ora para poder contrariar fundamentando, terá o tribunal, obviamente, que ter um conhecimento técnico que lhe permita esse juízo de valor estribado em sólidos conhecimentos que devem ser demonstrados na imediação probatória. Esse conhecimento não terá que ser geral, isto é, não se torna indispensável que no caso do tribunal de constituição coletiva todos os seus membros, obrigatoriamente possuam essa tecnicidade, bastando que um deles a tenha. Assim, segundo alguns autores “poderá a perícia ser indeferida, pelo tribunal, se um ou mais membros deste, possuir esse conhecimento técnico próprio, devendo, no entanto, ser dada sempre a oportunidade aos sujeitos processuais para se pronunciarem sobre a questão decidenda” (Albuquerque, 2009, p. 422).

Salienta-se, no entanto que, tratando-se de perícia sobre o estado psíquico do arguido, não será possível ao tribunal arrogar-se como conhecedor e possuidor dessas capacidades técnicas que permitiriam avaliar ao nível psíquico, o arguido. Deve, deste modo este tipo de perícia atinente a verificar que imputabilidade e da imputabilidade diminuída do arguido, quando suscitada fundamentadamente, ser autorizada pelo tribunal para que possa ser feita por técnicos devidamente credenciados e possuidores destes conhecimentos técnicos e científicos (Albuquerque, 2009).

Valerá para todas as fases processuais, atendendo à maior especificidade e ao melindre do objeto de estudo, como seja a questão psíquica da pessoa humana. Ainda assim, no que diz respeito à credibilidade tout court do arguido, não deve a autoridade judiciária fazer uso da perícia, pois tal matéria recai apenas na sua esfera jurisdicional.

Pelo que foi dito, esta visão doutrinária poderá conflituar com a defesa de um processo equitativo, pois que, pese embora tal possa acontecer em sede de julgamento, algo que se poderá entender devido à imediação probatória e, como se disse devido ao facto do tribunal dar conhecimento aos sujeitos processuais de que tem essa faculdade e competência técnica, científica e até artística para poder aquilatar dos factos e da sua relevância para a decisão da causa.

O deferimento para a realização da perícia não pode, portanto ser imposta em termos de obrigatoriedade absoluta, existindo para o efeito, uma certa margem de discricionariedade legal, em ordem a permitir determinada recusa que possa justificar-se, o que sucederá, nomeadamente quando a realização dessa diligência não se mostre essencial para a descoberta da verdade material. Mas também será assim, nas outras fases processuais, onde o princípio da imediação não tem grande aplicabilidade? Parece, pois que serão coartadas das garantias de defesa e do próprio processo criminal equitativo, caso tal inadmissibilidade seja feita ou recusada quando a investigação ainda se encontra em atividade, quer essa solicitação probatória seja feita pelo arguido ou mesmo por outros sujeitos processuais como o ofendido, no seu papel de titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos.

Similarmente no que concerne às partes civis, estas têm a mesma possibilidade de fornecer prova e requerer diligências, mas apenas no tocante à sustentação da prova no âmbito da indemnização civil, pelo que lhe é dada para este efeito apenas, a mesma possibilidade que ao assistente.

Não parece viável que uma perícia deixe de ser feita, apenas porque o titular do processo tem conhecimentos técnicos para interpretar e valorizar determinado facto. Frequentemente acontece ser impossível verificar um facto ou desvendar uma prova sem a indagação que pressupõe ter conhecimentos técnicos e científicos (Jesus, 2011, p. 128), que não estão ao alcance de todos, mormente alguns sujeitos processuais. Ao contrário, sempre que possível deve a perícia ser feita e vir a constar dos autos para que outros intervenientes processuais, no presente e futuro, possam vir a ter o conhecimento devido daquilo que surgiu no processo, através de especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos. Cumulativamente, poder existir a possibilidade de o perito ser ouvido nas várias fases processuais e sempre que tal de mostre necessário para a descoberta da verdade, funcionando como garante de um processo equitativo.

 

IV. As Perícias Lofoscópicas no Novo Regime Jurídico. Perspetivas e Limites

    A. Teleologia do Atual Regime Jurídico das Perícias Lofoscópicas

O regime jurídico da identificação judiciária lofoscópica e fotográfica consagrado pela Lei 67/2017 de 9 de agosto (LIJLF), coloca na esteia do normativo jurídico-processual uma ferramenta de controlo e salvaguarda de direitos fundamentais dos sujeitos passivos de identificação através da cientificidade da lofoscopia bem como da recolha de dados fotográficos.

O mens legis do presente regime jurídico assenta, lacto sensu na possibilidade de construção de um ficheiro central de dados biométricos, essencialmente lofoscópicos que, no entanto, podem ser complementados com dados fotográficos que possam, desta maneira, permitir a possibilidade de realizar identificações de suspeitos em processo penal.

Por outro lado, a LIJLF vem dar sentido aos compromissos internacionais no que concerne à troca e transmissão de dados entre Estados Membros da União Europeia, dando cumprimento ao ajustamento à ordem jurídica interna das Decisões 2008/615/JAI e 2008/616/JAI ambas do Conselho, de 23 de junho de 2008. Refira-se que o objetivo destes normativos internacionais é o de que os Estados Membros devem cooperar entre si na realização da justiça, mormente através da identificação de suspeitos no âmbito criminal com o auxílio das novas ferramentas tecnológicas que permitem a recolha e o tratamento de dados biométricos considerados como preponderantes e fidedignos pelo que, não podem ficar na esfera da tutela de custódia de um Estado Membro, mas, ao invés, devem estar ao serviço de todos os Estados que, por um lado contribuem para a recolha e tratamento dos dados identificativos e por outro, obrigam-se à troca dos mesmos, com outros Estados Membros.

Pode assim falar-se num sistema de apoio à justiça que deixou de ser feito apenas internamente, para o poder ser internacionalmente, contribuindo desta forma, para uma justiça europeia que tenta fazer face a uma criminalidade que, também ela se tornou internacional. O crime deixou de se cingir ao modelo interno para assumir contornos de transnacionalidade pelo que é imperioso que os Estados possam munir-se de mecanismos científicos e cooperar entre si, com a troca de informação pertinente para a repressão criminal.

O ficheiro central de dados lofoscópicos como elemento fulcral deste regime jurídico dá corpo ao plasmado na sua exposição de motivos ínsita no projeto inicial, onde se pode verificar que a base de dados de impressões digitais pretende fazer face a duas dimensões; (1) a prevenção criminal e (2) a investigação criminal, permitindo a interconexão de dados recolhidos pelos diversos Órgãos de Polícia Criminal de competência genérica. Especial importância para a criação de um ficheiro desta natureza foi esteada no acervo da União Europeia, no que concerne à troca de informações no âmbito do Acordo de Prum, dando especial realce às necessidades de luta contra o terrorismo e a criminalidade transfronteiriça.

Em suma, a criação de um regime legal que dá corpo ao ficheiro central de dados lofoscópicos permite que, a recolha de amostras e a inserção no sistema informático seja um propósito assumido pelo País no sentido de poder colaborar interna e internacionalmente no apoio à investigação criminal. Por tal facto quis o legislador fornecer uma ferramenta que funcione como um repositório de informação, recolhida mediante pressupostos legais próprios e que, sempre que autorizada, possa dar lugar a uma perícia lofoscópica de extrema importância no apoio científico à investigação criminal.

Deve interpretar-se pois, que a LIJLF incorpora um mecanismo legal e técnico-operacional de recolha e tratamento de dados, pelo que a sua eficiência só poderá consubstanciar-se na efetiva e permanente recolha desses mesmos dados, bem como a sua centralização em suporte físico que posa permitir, em momento oportuno, a realização de uma perícia lofoscópica de que dependerá sempre a citada e prévia obtenção de dados que se encontram no ficheiro central. Outrossim e em prima facie está patente neste regime jurídico o objetivo de ter disponível um conjunto de dados que possam, quando disso for necessário, ser utilizados para efetivar uma cabal identificação judiciária de determinado indivíduo.

Neste sentido, a realização de diligências prévias e consentâneas com o princípio da legalidade, mitigado com o princípio da investigação e da descoberta da verdade material são uma exigência da atividade de polícia técnica e da ciência forense laboratorial, pelo que, sempre no respeito pela salvaguarda dos direitos fundamentais e na prossecução de um processo criminal justo e equitativo, devem os operadores judiciários cooperar e agir no sentido de alimentar esta base de dados com fins específicos de identificação judiciária e lofoscópica.

    B. A Identificação Judiciária e os Visados Como Sujeitos de Intervenção Pericial

Para efeitos de identificação judiciária nos termos do artigo 3.º da LIJLF, o momento processual aqui presente circunscreve-se na realização de uma perícia forense que, na conformidade legal e processual, se obriga a pressupostos muito próprios de realização.

Se por um lado se obrigada a pressupostos inerentes à realização de um ato pericial, também daí advém o valor reforçado da prova pericial enquanto tal, algo que decorre do artigo151.º e seguintes do CPP. Diferentemente da realização da atividade pericial, por norma e a montante, encontra-se a inspeção judiciária aos locais e cenários criminais. Aqui os pressupostos de realização são diferentes e o seu resultado probatório final é ele também diverso.

Em suma, para efeitos de identificação judiciária, nos termos deste diploma legal, existem dois momentos de intervenção diferenciados, o que, implica razões de atuação diferentes e com competências de intervenção distintas uma da outra. Os sujeitos passivos da identificação judiciária (art.º 3.º, n.º 1 al. a) da LIJLF) são indivíduos que, constituídos arguidos em processo-crime possam estar numa das seguintes circunstâncias (i) quando existam dúvidas quanto à sua identidade e portanto não sejam conhecidos os elementos necessários a dar como garantida uma determinada identificação para certo indivíduo; (ii) quando na sequência de aplicação de medida de coação privativa da liberdade, o que implica que, imperativamente sempre que alguém seja sujeito a determinado processo criminal e daí advenha a privação da sua liberdade por via de uma medida de coação, fica sujeito à identificação judiciária, ou ainda (iii) mediante despacho judicial, ponderadas as necessidades de prova, o que permite que, em casos de não conformidade com os pressupostos anteriores, poderá levar-se a cabo uma identificação judiciária mediante a intervenção da autoridade judiciária competente naquela fase do processo.

Pode o despacho inicial ser emanado do procurador do Ministério Público, titular da ação penal no âmbito daquele processo, exceto se se vier a verificar a recusa por parte do visado, caso em que o despacho passará para a alçada do juiz competente na fase em que o processo se encontre. Estas perícias seguem o regime geral, devendo portanto, solicitar-se à investigação criminal a ponderação da necessidade probatória que implique a sua realização, ponderada oportuna e proporcional.

Sempre que essa necessidade probatória exista, deve ser emanado pelo titular da ação penal a respetiva ordem de perícia, sendo que, nos casos de recusa do visado, deve o ministério público promover ao juiz a sua realização. Este ponderará dos critérios de necessidade probatória, ao caso concreto e decidirá fundamentando tendo sempre em conta o direito à integridade pessoal e a reserva da intimidade do visado. O regime seguido anteriormente – na ausência da atual LIJLF – pelos órgãos de polícia criminal e demais operadores judiciários e na ausência de normativo especial, a sua ação pericial sustentava-se numa interpretação extensiva do conceito jurídico em que o Ministério Público poderia delegar em autoridade de polícia criminal a faculdade de ordenar a efetivação de perícia relativamente a determinados tipos de crime, em caso de urgência ou perigo na demora, nomeadamente quando a perícia deva ser realizada conjuntamente com o exame dos vestígios, (art.º 270, n.º 3 do CPP), excetuando os casos em que estivessem em causa as perícias médico-legais.

Ora os peritos em lofoscopia tinham, neste normativo, uma prerrogativa de ação pericial, pese embora muito além daquilo que a norma previa. No entanto, a comunidade jurídica no seu todo vinha aceitando como boa praxis judiciária a realização destas perícias, pois não se entendia que pudessem violar o direito ao princípio da ampla defesa dos visados, com o procedimento técnico e científico. Permitia-se um regime de perícia por “arrasto”, i.e., sempre que uma amostra problema era recolhida em cenário de crime, poderia imediatamente ser comparada com uma amostra referência já ínsita no ficheiro central de dados lofoscópicos, independentemente de critérios de necessidade probatória da investigação criminal em concreto.

Deste modo, o atual sistema traz uma outra segurança e certeza jurídicas, bem como o cumprimento do princípio da legalidade, necessidade probatória e proporcionalidade, obrigando a investigação criminal, através do titular da ação penal a incidir o seu foco naquilo que pretende ao nível pericial para o seu processo, evitando-se a completa ausência do princípio do controlo posterior da ação de coadjuvação levada a cabo pelos órgãos de polícia criminal, nesta matéria.

 

V. Limites à Capacidade Pericial por Via da (Falta de) Recolha de Amostras-Referência

A recolha de uma amostra-referência, sendo esta entendida como “ (…) conjunto de impressões lofoscópicas ou seja, as impressões digitais ou palmares, recolhidas de uma pessoa de identificação conhecida, correspondentes ao desenho formado pelas linhas papilares dos dedos e das palmas das mãos” (art.º 2.º al. b) da LIJLF) é feita, por via de regra, em sede de exame aos locais, pessoas e coisas, (art.º 171.º do CPP), o que pressupõe desde logo uma supervisão do titular da ação penal ou da autoridade de polícia criminal, com a competência sobre a investigação que tem em si delegada.

A recolha da amostra referência através de resenha lofoscópica (art.º 2.º al. c) da LIJLF) pode assim ser determinada pela autoridade judiciária titular da ação penal ou pela autoridade de polícia criminal com a delegação daquela investigação em concreto. Trata-se, pois de uma decisão destas entidades que na presença de certo indivíduo constituído arguido em processo, determinam que o mesmo se sujeite à recolha destas amostras-referencia.

A recolha da amostra-referência para os suportes próprios que constituem a resenha lofoscópica é precedia de informação ao visado que deve ficar ciente dos motivos daquela diligência, devendo este consentir a sua realização dando sufrágio ao princípio da colaboração com a justiça, algo a que se encontra vinculado como sujeito processual.

Esta recolha da amostra-referência, resenha é precedida de informação ao visado (art.º 4.º n.º 2 da LIJLF) consubstanciando-se esta informação na perceção por parte do mesmo de tudo o que fundamenta tal ato processual, i.e., sobre os motivos que presidem à recolha. No estreito cumprimento do princípio da colaboração com a justiça e do princípio da boa-fé deve o sujeito passivo da recolha, colaborar e consentir a mesma, possuindo, no entanto o direito de se opor.

Uma vez que se trata de um mero exame pode o mesmo recusar-se a realizá-lo, o que obriga a que tenha neste caso de recusa, de existir uma ordem da autoridade competente para que o mesmo seja sujeito à diligência de forma coerciva. Neste caso segue-se o formalismo ínsito na lei processual penal no que tange aos exames, (art.º 4.º, n.º 3 da LIJLF). Ora esta recusa pode se entendida como um direito à sua não autoincriminação na vertente fundada no princípio do nemo tenetur se ipsum accusare e que possibilita ao visado a sua não colaboração com a justiça (Pimentel, 2012, p.73) direito este que poderá ser-lhe vedado com a intervenção jurisdicional de compressão de direitos fundamentais.

Pela necessidade probatória no caso concreto e, atendendo a que a recolha da amostra-referência já, ab initio, foi determinada pela autoridade judiciária competente, por via de regra o procurador do Ministério Público titular do processo (art.º 4.º, n.º 1 da LIJLF), havendo recusa a esta determinação e atendendo a que se trata de características físicas do visado, existe a necessidade de intervenção do juiz em conformidade com o previsto na lei processual penal para os exames, (art.º 172.º n.º1 e 2 cj art.º 154.º n.º 3, todos do CPP).

Na prática, exige-se despacho que determine a efetuação de resenha, por parte da autoridade judiciária ou por autoridade de polícia criminal, à qual a investigação se encontra delegada, após a constituição de arguido.

Reforce-se que existe a possibilidade do despacho que ordene a recolha de amostra-referência poder ser levado a cabo por autoridade de polícia criminal, in casu quando existir a impossibilidade de contacto com a autoridade judiciária, verificando-se o periculum in mora que agrave o risco de a tardia intervenção não possibilitar a concretização prática da ação dentro do tempo útil. Aqui a intervenção da autoridade de polícia criminal deve ser eficiente, despachando fundamentadamente a obrigação de sujeição do visado à recolha da amostra-referência. Pelo fundado perigo da demora em promover a atempada recolha da amostra-referência, deve a autoridade de polícia criminal assumir o ónus da promoção do ato processual em referência.

De todo o formalismo levado a cabo pela autoridade de polícia criminal, deve ser dado, logo que possível e no menor espaço de tempo, conhecimento à autoridade judiciária titular do processo em investigação, que promoverá a sua validação. Verifica-se, pois, que com este regime jurídico passou a existir uma forte limitação ao volume de perícias realizadas até então, vindo a afetar gravemente a atividade dos laboratórios forenses nesta área científica, bem como os objetivos da investigação criminal.

Como se verifica pelos dados referentes ao relatório anual de investigação criminal, levado a cabo pelo Departamento de Investigação Criminal da Polícia de Segurança Pública, a entrada em vigor da LIJLF veio limitar a realização de resenhas a suspeitos, fazendo com que os números tenham diminuído drasticamente. Em 2015 foram realizadas 7226 resenhas, em 2016 este número manteve a tendência, com 7033 resenhas concluídas, sendo que o ano de 2017 – com a entrada em vigor da LIJLF, em agosto – fechou com 4657 resenhas efetuadas, verificando-se no segundo semestre uma colossal queda dos valores. Tal tendência continuou nos anos seguintes com 478 em 2018 e 803 em 2019. Refira-se que estes dados apenas se referem à atividade de polícia técnica forense da PSP, sendo que nos demais OPC, como a Guarda Nacional Republicana e a Polícia Judiciária, a tendência de queda tem a mesma proporcionalidade.

Na sequência desta hecatombe dos números de realização de resenhas, torna-se impossível alimentar a base de dados AFIS e consequentemente a impossibilidade de realização de perícias que levem à identificação de suspeitos.

 

VI. Novo Paradigma da Identificação Judiciária como Garante do Princípio da Celeridade e Economia Processual

Numa perspetiva do processo de investigação criminal, torna-se necessário alterar o paradigma que vinha sendo utilizado na realização de perícias lofoscópicas atinentes à identificação de arguidos em processo-crime. Antes, a realização de uma perícia tinha a coberto e a montante a recolha, análise e tratamento de vestígios lofoscópicos, o que pressupunha que o técnico de inspeção judiciária tinha a premente necessidade de realizar o exame à cena de crime e a respetiva recolha do vestígio e, em ato seguido, a também necessidade de comparar esse mesmo vestígio com uma amostra referência que tendesse numa identificação de um suspeito da prática daquele ou de outros crimes. Hoje, essa metodologia forense, não tem escopo no atual regime jurídico, visto que se vislumbra uma linha separadora entre aquilo que é considerado de tecnicidade ao nível de uma inspeção judiciária e aqueloutro tido como uma comparação lofoscópica consubstanciada numa identificação judiciária de determinado suspeito da prática de um crime, sobre o qual decorra uma investigação criminal.

Dito de forma simples, a recolha em cena de crime de vestígio lofoscópico mantém a sua estrutura anterior, já a realização de uma identificação judiciária depende das necessidades da investigação criminal e concretamente da supervisão e tutela judiciária da entidade titular da ação penal em cada fase do processo.

Passamos pois, de um regime de realização de perícias lofoscópicas “por arrasto” independentemente das necessidades da investigação, pois que, em certos casos o arquivamento ou mesmo a prescrição já tinham acontecido e o perito continuava a realizar a perícia, apenas porque a efetivação, a destempo, de determinada resenha vinha a identificar-se com um vestígio existente em base de dados, logo a perícia era realizada, sem que se questionasse a investigação quanto à sua necessidade, para um regime de controlo judiciário obrigatório dessa mesma perícia para a investigação em curso.

Ora, este novo regime sufragado juridicamente num controlo direto do titular da ação penal, permite a realização da perícia lofoscópica, somente se esta interessar e ainda for útil à investigação em curso, o que permite que o princípio da celeridade processual seja uma realidade nova. Realidade nova, porque, agora, a investigação e o titular da ação penal têm uma atitude ativa quanto ao trabalho a realizar pelo perito, não ficando este com o ónus de decidir se realiza ou não a identificação judiciária. Torna-se desta forma, o processo penal mais célere e objetivo quanto às metodologias a seguir e bem assim quanto ao manancial probatório necessário para a devida imputação dos factos às autorias do crime.

Não menos importante, será a salvaguarda do princípio da economia processual, na estreita medida em que, a perícia não é realizada só porque houve um hit de correspondência, mas apenas se for ainda importante para a investigação criminal. Deixam, pois, de existir casos em que a perícia era realizada em função da citada correspondência – e que, muitas vezes chegava a tribunal e o processo estava arquivado ou prescrito há muitos anos – para apenas o ser se for pertinente e necessário, o que vem congregar esforços no sentido de uma verdadeira economia processual e que se traduz, sem margem para dúvida, também numa economia de recursos.

Pode aquilatar-se, assim, de que pese embora o atual regime jurídico veio trazer várias complicações operacionais, mas tem o mérito de profissionalizar em mais elevado grau o desempenho da ciência forense lofoscópica ao serviço da investigação criminal. Neste conspecto, seremos forçados a admitir que, pese embora o regime tenha muitos contras, este pode ser entendido com um dos prós que veio a concretizar-se e que poderá evitar a realização de trabalho pericial e pré-pericial desnecessário ao processo em causa, o que implica economia de recursos e o aumento do foco do perito para o que na realidade se torna essencial e urgente.

 

VII. Conclusões e Propostas

Como decorre da formulação do problema inicial que referimos em duas dimensões, podemos concluir que, no que concerne à aplicabilidade prática da perícia à investigação criminal, nem sempre os operadores judiciários estão cientes da mais-valia do saber científico para a descoberta da verdade material. As dificuldades elencadas ao longo desta investigação levam-nos a inferir que o desconhecimento da capacidade pericial e a sua exigência formal para a concretizar, ainda funcionam como limite de atuação dos operadores judiciários. O saber deixou de estar centrado no investigador para passar a estar na ciência e no perito, pelo que não pode, nem deve o tribunal remeter para segundo plano as questões científicas que se apresentam como prova de valor reforçado.

Outrossim, a perícia deve estar simultaneamente ao serviço da acusação e da defesa, pelo que no atual regime, o princípio da igualdade de armas, está longe de ser conseguido, pois nem sempre, como vimos, a defesa tem a mesma capacidade e possibilidade de fazer uso dos mecanismos periciais para afirmação da sua tese no processo. Neste sentido preconiza-se uma alteração ao regime geral das perícias tornando-o mais eficiente e capaz de responder aos anseios da investigação criminal. Aposta em laboratórios forenses ao serviço da investigação criminal, onde o princípio do perito natural seja possível de concretizar ao invés do atual sistema onde tal não é viável nem possível. Torna-se necessário fomentar, em sede de formação inicial de magistrados, a informação das capacidades forenses dos vários laboratórios, onde as policias têm um papel fundamental na passagem de informação aos futuros operadores da justiça. Não basta existir, é necessário que os titulares da ação penal conheçam a existência para dela fazerem uso.

Propomos um estreitar de relações entre os laboratórios forenses e o Centro de Estudos Judiciários no sentido de consciencializar as magistraturas – Judicial e do Ministério Público – da mais-valia da atividade pericial na investigação criminal, bem como das capacidades existentes e de outras a fomentar no futuro, onde as boas práticas, desde a inspeção à cena de crime até ao trabalho laboratorial sejam conhecidas de todos e onde a custódia da prova se torne uma verdadeira regra de ouro, algo que nem sempre se verifica no atual sistema.

Numa outra extensão do problema, as contingências limitadoras da identificação judiciária na resposta às necessidades da investigação criminal são uma realidade, pois que o modus faciendi das perícias lofoscópicas, após a entrada em vigor do novo regime sufragado pela LIJLF, teve implicações adversas e forte impacto na atividade forense e verificou-se em duas dimensões: (1) a dimensão intrínseca e prática de recolha de amostras referência que possam alimentar o ficheiro central de dados lofoscópicos (Automatic Fingerprints Identification System; AFIS) e que permitem a realização de perícias lofoscópicas, mediante a comparação entre as amostras referência, recolhidas aos suspeitos de crime, através das resenhas e as amostras problema que decorrem do processamento dos exames aos locais de cena de crime. Nesta dimensão a questão crítica prende-se com o facto de apenas poder ser feita a resenha a suspeito, desde que exista processo em investigação e a consequente constituição de arguido, o que limita profundamente a ação penal e a possibilidade de alimentar a base de dados AFIS e (2) a dimensão extrínseca e teórica onde as necessidades da investigação acabam por redimensionar a quantidade e a possibilidade de realização de perícias lofoscópicas. Agora, por um lado, passam a ser a investigação criminal e o objeto do processo, sufragados pelo princípio da economia processual que definem a realização ou não de uma perícia lofoscópica e, por outro, existe a limitação da base de dados AFIS que não responde, por ausência de amostras referência ali introduzidas.

Uma resposta ao problema inicial seria uma intervenção de política criminal. Neste sentido, e por tudo o que já foi lavrado no presente estudo, verifica-se necessidade de uma alteração ao regime jurídico (LIJLF), no sentido de que possa permitir a realização de perícias lofoscópicas de forma célere, ajustada e eficiente perante as necessidades processuais da investigação criminal. Deve optar-se por uma política legislativa juris condendo, mormente quanto à realização de resenhas a suspeitos de crime, desde que constituídos arguidos e não dependente de investigação criminal em curso nem de prévio controlo da autoridade judiciária, sendo este realizado a posteriori no processo, algo que contribuirá para a alimentação do ficheiro central de dados lofoscópicos e fotográficos de forma a permitir a aplicação prática de todo o sentido teleológico da sua criação. Somos ainda de parecer que a realização da perícia lofoscópica e a competente identificação judiciária esteja sob a ordem de perícia do titular da ação penal, sem a necessidade de que essa mesma ordem de perícia esteja na alçada judicial, pois esse controlo formal e legal sê-lo-á feito aquando a intervenção do juiz de instrução, como garante dos direitos fundamentais de todos os visados com a perícia, sempre que dela resulte a recusa do visado e, por esse facto, se torne necessário a intervenção da entidade judicial ao nível das garantias de direitos fundamentais. Deste modo toda a realização de resenha que consta do AFIS já foi sufragada por essa via, ou porque houve consentimento do visado ou se o não houve já interveio o juiz de instrução para a sua realização.

Com esta intervenção ao nível da política legislativa, que se infere como urgente, criando um regime mais eficiente e com capacidade de resposta no aperfeiçoamento das soluções teóricas e doutrinárias, reforçar-se-á a capacidade interventiva da perícia na investigação criminal com fortes implicações práticas no modus operandi da justiça em Portugal.

 

Referências Bibliográficas

Albuquerque, P.P. (2009). Comentário ao Código de Processo Penal, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, (2.ª ed. Atualizada). Lisboa Universidade Católica Editora.

Ascensão, J.O. (2017). O direito: Introdução e teoria geral. (13.ª Ed). Coimbra: Almedina.

Canotilho, J. J. G., & Moreira V. (2007). Constituição da República Portuguesa Anotada. (Vol. 1, 4ª ed. Rev.), Lisboa: Coimbra Editora.

Clemente, P. (2016). Ética policial: Da eticidade da coação policial. Lisboa: Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna.

Calheiros, M. C. (2015) Para uma teoria da prova. (1.ª ed.). Coimbra: Coimbra Editora.

Dias, M. (2005). Particularidades da prova em processo penal: Algumas questões ligadas à prova pericial. Revista do Centro de Estudos Judiciários, 3, (2), 142-187.

Faria, M.J. (2001). Direitos fundamentais e direitos do homem. (3.ª ed). Lisboa: Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna.

Ferreira, M. C. (2010). Lições de direito penal: I – A lei penal e a teoria do crime no Código Penal de 1982, II – Penas e medidas de segurança (reimpr. 4.ª ed.). Coimbra: Almedina.

Gonçalves, F., & Alves, M. (2009). A prova do crime: Meios legais para a sua obtenção. Coimbra: Almedina.

Gonçalves, M. M. (2005). Código de Processo Penal Anotado e Comentado. (15.ª ed.). Coimbra: Almedina.

Jesus, F. M. (2011). Os Meios de Obtenção de Prova em Processo Penal. Coimbra: Almedina.

Latas, A. J. (2006). Caracterização sumária e prova pericial. Coimbra: Almedina.

Lei n.º 49/2008, de 27 de agosto. Diário da República, 1.ª Série, n.º 165.

Lei n.º 67/2017 de 9 de agosto. Diário da República, 1.ª série, n.º 153.

Mannheim, H. (1984). Criminologia comparada. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

Mendes, P. (2004). As proibições de prova no processo penal. In Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais. Lisboa: Almedina.

Oliveira, F. (2008). A defesa e a investigação do crime. (2.ª ed.). Coimbra: Almedina.

Pimentel, A. L. (2012). A recusa da perícia intrusiva como direito à não autoincriminação – Nemo Tenetur Se Ipsum Accusare. Revista Politeia, Ano IX, pp 69-80. Lisboa: ISCPSI.

Resolução do Conselho de Ministros n.º 37/2002, de 28 de fevereiro. Código deontológico do serviço policial. Diário da República I, 2.ª série.

Santos, M. & Henriques, M. (2008). Noções elementares de direito penal. (3.ª ed.). Lisboa: Rei dos Livros.

Silva, G. M. (2002). Curso de processo penal II. (3ª Ed. Rev. e atualiz.). Lisboa: Verbo.

Verdelho, P. (2008). Técnica no novo CPP: Exames, perícias e prova digital. Revista do Centro de Estudos Judiciários, 9 (1), 7-35.

 

Notas

  1. Veja-se o caso da questão dos crimes perpetrados com recursos a meios informáticos. Esta, é hoje uma realidade nova, pois além ser uma área do saber que não regista longevidade acrescida – tem poucas décadas de existência – tem a fundamental característica de ser um conceito em constante mutação, o que obriga a que os peritos se adaptem constantemente a essa mesma realidade criminal. Em paralelo com esta constante mutação, o perito e as polícias, nomeadamente através dos seus laboratórios de criminalística e ciência forense, deparam-se com a necessidade de um forte investimento em tecnologia que possa acompanhar as necessidades da perícia, pois que, a evolução digital é de tal forma rápida e em constante, que obriga os laboratórios e em concreto as polícias e demais entidades por eles responsáveis, a ter que gerir e dedicar parte significativa dos seus orçamentos à constante atualização de equipamentos forenses que possam dar as necessárias respostas ao trabalho do perito e consequentemente a prova à descoberta da verdade material a cargo das estruturas e sistemas de investigação criminal.

  2. Quanto à competência para a realização do despacho judicial referido no artigo 3.º, n.º 1, al. a) item iii) pelo facto da recolha de amostras referência e consequente tratamento de identificação judiciária se enquadrar nos casos de perícia sobre as características físicas de determinado indivíduo – vide artigo 154.º n.º 3 do Código de Processo Penal – o despacho inicial deve emanar da autoridade judiciária titular da ação penal – o Ministério Público – no entanto, se houver recusa por parte do visado, este despacho passa a exigir a intervenção do juiz, que no caso da fase de inquérito será o juiz de instrução.

  3. Teria o técnico de inspeção judiciária que, sempre que recolhesse um vestígio, sem mais delongas ou formalidades, inseri-lo numa busca comparativa no AFIS, dando um determinado hit que lhe possibilitava proceder à respetiva identificação judiciária, sem que sequer se preocupasse se isso era ou não necessário ao processo criminal em curso. Ou, ainda, na pior das hipóteses se esse mesmo processo já estivesse terminado, por qualquer uma das formas processuais. Neste conspecto, v.g, poderia dar-se o caso de se realizar uma perícia, a destempo, passados anos, quando o processo já tivesse transitado em julgado.