Dos muitos e vastos problemas recenseados pelas autoridades de controlo da atividade policial, e que se podem incluir naquilo a que chamaríamos uma geografia de risco, a questão do respeito pelos direitos humanos é uma das que tem merecido, nos últimos tempos, uma atenção muito particular.

Não apenas, porque sob a esclarecida visão de Vital Moreira, na sua qualidade de responsável português pelas comemorações celebrativas dos 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e dos 40 da Convenção Europeia, esta questão foi trazida à reflexão pública em vários setores da vida nacional, mas, porque tem sido tema desde há muito abordado nos estabelecimentos de ensino superior que formam os futuros Oficiais de Polícia e porque aqui — neste Instituto policial de ensino universitário — se organizaram vários encontros científicos sobre a temática, ou sobre temática conexa.

E, ainda, gostaria de sublinhar, porque vários Oficiais de Polícia têm, e muito bem, refletido e escrito sobre o assunto — como me tem parecido ser obrigação de quem exerce funções de docência e de investigação — a fim de que o campo doutrinário na área não fique deserto ou venha a ser preenchido por quem não tem, ou não quer ter, sensibilidade para as temáticas da segurança pública.

O tema desta Lição Inaugural foi-me sugerido, muito oportunamente, pelo Diretor do Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna, a quem aproveito para agradecer o convite que me dirigiu para proferir a Oração de Sapiência deste ano académico, convite que me honra e me pesa em igual medida.

Esta sugestão demonstra a acuidade e a preocupação do Instituto em querer pensar, refletir e analisar numa perspetiva científica e académica, sobre a forma de melhor se evitarem comportamentos desviantes, em defesa da comunidade de cidadãos que cabe à Polícia de Segurança Pública proteger com frutuosos resultados e não menos elogios.

Mas a sua sugestão — senhor Diretor — atesta ainda, a meu ver, o cuidado e a atenção com que olha para o núcleo essencial de formação da área das Ciências Policiais.

Neste núcleo central rege pela sua determinante importância a Ciência do Direito, mas todos sabemos que no âmbito da aplicação dos princípios e regras jurídicos não basta um exercício acrítico, mas cada vez mais se exige a implementação de uma verdadeira cultura jurídica de direitos humanos de forma a que a nossa Polícia possa ser apontada como exemplo a seguir neste específico, mas sobretudo marcante âmbito do respeito pelos direitos humanos no decurso da atividade policial.

Ou seja, que possa ser também a nível europeu e internacional apontada como exemplar num conjunto de boas práticas que possa ser firmado e que vai muito para além do que está vertido em letra de lei escrita.

A implementação da referida cultura de direitos humanos implica um núcleo muito variado e distinto de ações.

Nesse núcleo, a formação inicial e ao longo da carreira é determinante, mas não será suficiente, nem nela se esgota.

Múltiplas são hoje as aceções que enformam o conceito de segurança, desde o estrito conceito de segurança interna, ao agregador conceito de segurança nacional, — ainda sem dignidade constitucional, — passando pela segurança cooperativa ou pela segurança do Estado. Mas, no plano internacional o conceito de segurança humana — intimamente relacionado com os direitos humanos — é dos que mais importância tem ganho quando avaliamos a qualidade da nossa democracia.

E, se antes este conceito era apenas aferido no mencionado plano da comunidade internacional e, por consequência, até como legitimador para o exercício do reconhecido direito de ingerência humanitária, hoje, certo é, que pode e deve ser aferido no plano interno, no plano nacional.

Também, a meu ver, e em função do que acabei de referir a figura do legal adviser que já se consolidou no apoio à decisão de comando nas operações internacionais humanitárias pode, e deve ser importada para as grandes operações de segurança interna e de ordem pública.

Não de forma casuística, como já tem acontecido em grandes eventos, e reconheçamos com grandes e elogiosos méritos, mas agora de forma estruturada, consistente, aproveitando as experiências que já existem com Oficiais formados e treinados nesta particular área de apoio jurídico à decisão policial.

Um dos projetos internacionais com maior visibilidade na comunidade científica mundial que avalia e mede a qualidade das nossas democracias é um projeto — em que tenho o gosto de colaborar e em que intervêm mais de 3000 peritos mundiais — e que se intitula Varieties of Democracy liderado pela reputada Universidade de Gothenburg, na Suécia.

No relatório de 2018 relativo à democracia no mundo, das muitas questões avaliadas pelos peritos diria que o grosso da coluna, direta ou indiretamente está relacionado com questões de direitos humanos.

No último relatório anual publicado, que resulta da maior base de dados mundial, em que são estudados 202 países entre 1789 a 2018, Portugal surge muito bem classificado, mas nele são assinalados cerca de 24 países que aparentam estar severamente afetados por aquilo a que hoje chamamos a terceira vaga de autocratização e alguns desses países são europeus e Estados membros da União Europeia.

Mais, quase um terço da população mundial vive em países em autocratização, passando de um inacreditável número de 415 milhões de pessoas, em 2016, para um inimaginável número de 2,3 biliões em 2018 a viver sob esses regimes.

Assinala-se, e bem o progresso que cerca de 21 territórios estaduais fizeram em defesa dos valores da democracia, que são valores de direitos humanos e que este regime prevalece na maioria dos países do mundo, cerca de 55%, ou seja 99 Estados, podendo afirmar-se que o Mundo está mais democrático comparando-se com qualquer momento do século XX.

Ainda assim, e de todo o modo, alguns destes números, como vimos, são preocupantes e devem merecer a nossa reflexão.

Hoje, há que o reconhecer a segurança encabeça a matriz de risco que é seguida pelos grandes investidores e players internacionais, para as suas decisões de parqueamento de capital e de investimento, mas esse elemento analítico nem sempre equivale a escolhas feitas em sistemas democráticos e sociedades livres, respeitadoras da cultura de direitos humanos, porque para que a segurança seja uma realidade é preciso que a liberdade não seja uma fragilidade.

Com a emergência de novos movimentos internacionais cívicos a responsabilidade pela segurança humana — a tal profundamente ligada à salvaguarda dos direitos humanos — é cada vez mais critério de exigência e de reivindicação para decisões justas, e os mecanismos de transparência e de accountability são disso garantia. A isso devemos estar igualmente atentos.

Se em Portugal temos alguns casos críticos na atuação da nossa Polícia? Sim, temos.

Se temos aspetos a melhorar? Sim, temos.

Se temos razões para censurar comportamentos desviantes na atividade policial? Sim, eventualmente, teremos.

Se todas estas ações críticas diminuem a nossa segurança, a liberdade de todos e a democracia de que nunca abdicaremos? A resposta é sim, sem qualquer adversativa.

Mas, de igual modo, teremos de reconhecer o esforço e a dedicação de milhares de Oficiais, chefes e agentes, homens e mulheres, que no terreno e muitas vezes desconhecendo formalmente as proclamações escritas de direitos humanos, materialmente as aplicam e tornam efetivo dessa forma, com a sua ação, o Estado de Direito democrático e a Constituição da Liberdade e das liberdades que nos rege. Os muitos programas de policiamento de proximidade são disso bons exemplos.

Já o disse por diversas vezes e gostaria de o assinalar, aqui e de novo, que na minha opinião, o século XXI, que nos calhou viver, é o século em que a temática mais importante será a da Segurança.

Não haverá, em dimensão e oportunidade, nenhum outro tema que se lhe comparará.

Esta é, pois, a minha proposição de base, o racional em que assenta toda esta minha intervenção.

Assistiremos certamente a grandiosas descobertas científicas, ao desenvolvimento de nova tecnologia, a inovações nunca anteriormente pensadas, ao investimento e difusão de diversidades, a novos futuros, mas ainda assim acredito que a segurança, nas suas múltiplas dimensões será o tema reitor na nossa vida.

O facto de sermos apontados como um dos países mais seguros do mundo não nos impede, antes nos impõe que reflitamos sobre os passos a dar para implementar, entre nós, uma verdadeira cultura de direitos humanos visível quotidianamente na ação policial. Melhor dito de reforçar essa cultura, porque ela já existe.

A Democracia não é uma conquista adquirida, é uma conquista de todos os dias e, por isso, sempre que somos exemplares no respeito e cumprimento dos direitos humanos durante a ação policial é um elogio que fazemos não apenas à importância da segurança pública, mas igualmente ao sistema democrático, à nossa Polícia de Segurança Pública, à nossa Constituição da democracia, à teoria dos direitos fundamentais, ao sistema internacional de direitos humanos.

Ao invés, quando falhamos damos argumentos a muitos que criticam a autoridade pública e que a desejam enfraquecida.

Por isso, também nos últimos anos, me tem parecido que das ameaças mais sérias à estabilidade dos Estados e sobretudo à estabilidade do nosso quotidiano e do nosso sistema democrático se destacam essas ameaças subtis — e porque não dizê-lo veladas — que nalgumas situações, mais graves e extremas, pretendem convencer-nos da incapacidade dos Estados em garantir a segurança dos seus concidadãos, com isso tentando demonstrar a inevitabilidade da privatização e da submissão ao comércio jurídico privado de parte de importantes áreas de soberania ou, tão grave quanto esta, o surgimento de discursos perigosos que, infelizmente vão fazendo o seu caminho, pelo mundo, pela Europa e, nalguns casos, até por Portugal.

Discursos que acentuam uma narrativa de hipervalorização da segurança, com políticas securitárias que diminuem o estatuto e a posição constitucionais do direito à liberdade, constitucionalmente previsto, entre nós no artigo 27.º e igualmente consagrado no artigo 3.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Daí, a perplexidade de se ouvir — vagamente, em murmúrio, mas com som audível — a pergunta que é toda ela um programa político de ação e a que, um verdadeiro cultor da tradição dos direitos humanos e por decorrência defensor dos nossos direitos fundamentais nunca responderá, porque a sua consciência e a Ética democráticas impedem essa resposta que é pedida,

Quanto estás disposto a ceder em liberdade para ganhar em segurança?

Nenhum de nós, pode ou sequer deve, na minha opinião responder a esta interrogação que, como disse e sublinho, tem incluso, em si, um programa antagónico aos direitos humanos e uma qualquer resposta seria uma adesão a esse ínvio projeto.

Estas, permitam-me que realce, são a meu ver as ameaças mais temerárias, porque como afirmei e reafirmo não são evidentes, não são diretas —mas subtis e veladas — e, por isso, bem mais perigosas.

O aparato dogmático dos direitos humanos deve ser uma barreira rígida e firme a essas agendas, a essas narrativas, a essas proclamadas soluções fáceis para problemas complexos, porque a ameaça não é, apenas de quem tem uma arma, é sobretudo de quem tem o dom e o poder da palavra que encanta e o talento da propaganda que arrasta multidões quase sempre impreparadas.

Como é possível ouvirmos de novo ecos com sentimentos revivalistas — e totalmente contrários aos direitos humanos — sobre a pena de morte, o uso da tortura, a castração química como forma de punição ou a reintrodução da pena de prisão perpétua?

Estimados/as Cadetes do Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna e Jovens Oficiais de Polícia que hoje recebeis as vossas Cartas de Curso, como pretendi deixar evidente a escolha que o vosso Diretor me sugeriu e a que prontamente aderi com total liberdade académica, de vos falar, hoje e aqui, sobre direitos humanos insta-vos a olharem para a componente jurídica da vossa formação como uma ferramenta indispensável que requer estudo, análise; não apenas dos instrumentos normativos, mas igualmente da jurisprudência administrativa, fixada designadamente pela Inspeção-Geral da Administração Interna e que deveis dominar — sobre casos graves e complexos — submetidos à sua apreciação e cuja subsunção jurídica importa conhecer para melhor se perceber — pelo estudo de casos concretos e reais — o que correu menos bem, o que deveria ter sido evitado e o que pode e deve ser melhorado na atividade policial.

Este treino jurídico — que é o garante da solidez do vosso comando — é tão importante, como importante é o treino de ordem unida, o treino das operações de ordem pública, o treino de uso da arma de fogo, o vosso treino físico, o vosso treino desportivo.

Todos sabemos, e ninguém tem dúvida, de que sereis exemplares no cumprimento e respeito dos direitos humanos.

Nunca e em nenhuma situação podereis condescender com a violência policial — que é desvio de poder e negativamente conotada — e nunca para vós pode ser sinónimo de uso do poder coercivo ou de uso da força legítima, que são manifestações da autoridade democrática que vos será delegada, regidas por princípios constitucionais e legais, por vós estudados, como o da proporcionalidade e os seus corolários da necessidade, da adequação, do mínimo de força, da proibição do excesso.

Nunca aceitareis qualquer forma de tortura, de preconceito, de discriminação, de detenção arbitrária, porque sabeis que estas são proibições que expressamente decorrem dos lustrosos 30 artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

A razão de ser desta Lição Inaugural é também a de fomentar a ideia de que o exercício das vossas honrosas funções de direção, comando e chefia terá sempre como critério primeiro e primário de decisão, o património conquistado dos direitos humanos, seja no território português ou no exercício de funções policiais em missões internacionais — e que essa defesa que ireis fazer quotidianamente a bem dos vossos concidadãos é —creiam, a meu ver, a melhor defesa que podem fazer do prestígio da Polícia de Segurança Pública, da relevância democrática da autoridade pública, do Estado de Direito democrático.

Reclamamos de todos vós, resiliência e coragem, mas também moderação, equilíbrio, temperança, a que, neste caso, chamamos sentido de Estado.

Ireis exercer as vossas nobres funções de comando policial num ambiente de permanente risco, onde os vossos concidadãos, que servireis com denodo e empenho, exigem segurança, mas nem sempre infelizmente, há que o reconhecer, simpatizam com investimento na área.

Será muitas vezes nessa conjuntura de eventual contradição que tereis de intervir reconhecendo que sois os primeiros responsáveis pelo cumprimento e respeito dos direitos humanos na atividade policial e porque somente deste modo se cumpre, pelos vossos exemplo e ação o nobre desígnio da Polícia de Segurança Pública, — que em boa hora abraçaste —, pela Ordem e pela Pátria.

Muito obrigado!

 

Notas