Editorial

 

Numa sociedade mundializada e crescentemente digitalizada, a capacidade de transmitir e acomodar novas configurações de partilha de conhecimento e de saber constituem, indubitavelmente, um desafio constante. Nessa contextura, uma das resoluções que traçámos, ab initio, quando assumimos a direção do Centro de Investigação (ICPOL) do Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna (ISCPSI), foi esmerar a estratégica de comunicação e o desenvolvimento, plus ultra, do intercâmbio científico, projetando, de forma particular, a produção científica concernente às linhas de investigação das ciências policiais e de outras ciências conexas.

De facto, a internacionalização da mensagem – leia-se, pensamento crítico e reflexão científica no domínio da segurança – reveste uma importância resolutiva para a criação e estreitamento de laços, dinâmicos e interativos, da nossa Unidade de ID&I com outros centros, universidades, agências e estruturas científicas internacionais, num exercício de abertura e de diálogo. Perfilhando, com a devida depuração ética e sentinela epistemológica, o desiderato orwelliano que “(…) se o pensamento corrompe a linguagem, a linguagem também pode corromper o pensamento” (Orwell, Politics and the English Language, 1946, p. 4, tradução nossa), a Editora ICPOL do ISCPSI enlaçou várias parcerias com destacadas personalidades da academia, num esforço recrudescido para disseminar o nosso labor multidisciplinar junto de diferentes universos, ajustando a comunicação e a linguagem a diversos públicos além-fronteiras.

É, portanto, sob a curvatura traçada da diversidade, pluridisciplinaridade e multilateralidade que vos apresentamos a edição de 2021 da Politeia – Revista Portuguesa de Ciências Policiais, desta feita, coroada com contributos de autores oriundos de diferentes áreas do saber e de dissemelhantes quadrantes geográficos, os quais patentearam elaboradas visões cosmopolitas relativamente a distintas matérias que assolam a dialética das ciências policiais e as organizações, nacionais e internacionais, que se dedicam ao estudo e à regulação das dinâmicas sociais e securitárias, alumiadas pela observância dos Direitos Humanos e pelo paradigma da Segurança Humana.

Hermano Duarte de Almeida e Carmo, através do artigo intitulado “A metodologia como dispositivo de orientação para a investigação”, apresenta-nos uma reflexão sobre a relevância da metodologia, usando-a como instrumento para discernir melhor a realidade que nos rodeia, de modo a preparar decisões adequadas. Explicitando a mundividência sináptica da metodologia na agnição, o autor procurou remenicar as seguintes questões: (i) Com que olhares podemos entender a realidade à nossa volta?; (ii) Qual o papel da ciência em geral e da metodologia em particular, como instrumentos de discernimento?; (iii) Como é que o projeto científico se assume como um dispositivo de orientação em qualquer investigação?; e (iv) Será que a metodologia pode ser usada com proveito em estudos sobre segurança? Para o efeito, o autor discorreu, continuamente, sobre os quatro dispositivos de orientação, a saber: 1) a delimitação do campo de pesquisa; 2) a definição do rumo da pesquisa; 3) a construção de modelos de análise; e, por último, a organização da pesquisa. Por fim, Hermano Carmo remata com um alerta relacionado com a necessidade de se considerar um quadro ético personalista e solidário, timonado pelos princípios de integridade, liberdade intelectual, igualdade e comprometimento profissional, científico e cívico.

Pela letra do estudo “El futuro de la policía. Hacia una policía del Siglo XXI”, ingressamos na cogitação de Laura Carrera Lugo sobre os desafios que se colocam à instituição policial no mundo contemporâneo. Antemurando que, nos dias que correm, falar da organização policial, é falar de mais um ator na custosa tarefa de proporcionar segurança nas sociedades, a autora discorre analiticamente sobre o novo significado que o serviço de polícia revestiu ante a complexidade que caracteriza o mundo moderno, com a sua diversidade de sistemas, instituições, profissões e individualidades. Embora muitas das funções que o constituíram desde o seu início ainda hoje estejam em vigor, foram acrescentadas novas atividades ao serviço policial que reforçaram a sua institucionalização e têm sido um reflexo da adaptabilidade das agências de aplicação da lei.

Seguidamente, Hugo Morales, num ensaio sob a égide “La Prevención Situacional del Delito: evidencias de su efectividad y discusión”, explana detalhadamente sobre o significado e alcance do procedimento de prevenção situacional do delito, suportado em reflexão teórica e informação empírica. Para o Autor, a prevenção do crime distingue-se de outros tipos de prevenção do crime pelo seu singular enfoque no cenário ou local onde o crime ocorre, bem como pela sua abordagem específica ao crime. É frequente descobrir-se que o crime não está distribuído aleatoriamente por uma cidade ou comunidade, mas está grandemente concentrado em certos locais conhecidos como crimes de “hotspot“, o que exige um conhecimento, simultaneamente extensivo e intensivo, do território urbano, a uma escala fina (bairro). As evidências internacionais, decorrentes de uma revisão sistemática e meta-análise da vigilância de bairro, que abrangeu 18 estudos de alta qualidade, concluiu que a vigilância de bairro estava associada a uma redução de 16% na criminalidade nas comunidades onde foi implementada, em comparação com as comunidades semelhantes que não a receberam. Outras análises mostraram que não havia diferença na eficácia entre programas baseados apenas na vigilância de bairros e programas que também incluíam inquéritos de segurança realizados pela polícia.

Carina Quaresma colaborou para esta edição da Politeia com o artigo cognominado “A medição do crime e o caso particular da criminalidade violenta em Portugal”. A criminalidade violenta representa uma grave violação dos direitos humanos e, para uma prevenção e combate eficazes, é essencial dispor-se de formas de medição do crime adequadas. Tendo por base os resultados da investigação concluída em 2019, a autora começa por apontar a necessidade de refletir sobre a própria definição de criminalidade violenta, uma vez que coexistem duas versões oficiais em Portugal, uma para fins estatísticos e outra para fins legais, sendo a sobreposição de crimes, entre ambas, inferior a 50%, e que conduzem a conclusões divergentes quanto à variação observada e analisada para um período de dez anos (2008 a 2017). Neste arco, apresentou reflexões e propostas ao nível da mensuração da severidade criminal (através de índices inter e intra-criminais), como formas complementares de medição do crime numa vertente mais qualitativa (“carga de violência”). Outrossim, Carina Quaresma descortinou alguns resultados decorrentes dessas análises, que indiciam um potencial aumento da severidade criminal, nomeadamente nos crimes contra as pessoas/homicídios. Por fim, concluiu com os indicadores relativos à progressão dos casos, ao longo das várias fases do processo criminal que posicionam o homicídio (em 100 registos, 74 geram condenação e em 66 é decretada pena de prisão efetiva) e a violência doméstica em polos opostos (em 100 registos, 6 geram condenação, e em menos de um caso é decretada pena de prisão efetiva: 0,4). Estas e outras proposições, visam contribuir para o aprimoramento do conhecimento em benefício do planeamento estratégico, no campo das políticas públicas de segurança interna.

A reflexão que se segue, intitulada “Justiça, Governança e Media – O caso de Ihor Homenyuk”, da autoria de Nuno Poiares, centra-se na análise qualitativa da margem de discricionariedade na atuação dos órgãos de comunicação social, através de um estudo de caso com ressonância no circuito português. A investigação desenvolvida perora que os média contribuem para a priorização dos factos e influenciam a velocidade da decisão política, em contraponto à velocidade da justiça, garantia institucional – liberdade da comunicação social – que pode exaurir ou fortalecer a comensuração subjetiva dos direitos fundamentais, face à impossibilidade de asseverar o que o autor designou de total media enforcement.

Transmovendo-nos para outras dimensões da contextura das ciências policiais, o consórcio formado por Luís Monteiro, Luís Massuça, Jorge Infante, Américo Sequeira e Tiago Silva introduz-nos o artigo “Atividade física em contexto de contenção social COVID-19 e impacto na aptidão física dos Cadetes-Alunos do MICP/CFOP do ISCPSI”. Analisando as reverberações da pandemia da COVID-19 no funcionamento das aulas – passaram de presenciais a síncronas – nas Instituições de Ensino em geral, e no ISCPSI em particular, este estudo teve como objetivos: (i) conhecer os comportamentos de atividade física dos cadetes-alunos do MICP/CFOP do ISCPSI em contexto de contenção social, para combate à pandemia da COVID-19; e (ii) conhecer o impacto do confinamento (de 3 a 4 meses) na aptidão física dos cadetes-alunos do MICP/CFOP do ISCPSI. Na sucessão da aplicação de inquérito (questionário online auto-preenchido) sobre a atividade física em contexto de contenção social e da avaliação da aptidão física em dois momentos (antes do COVID-19 e no regresso às aulas presenciais no ISCPSI), os resultados do estudo evidenciam que, na ausência/redução da atividade física sistemática, os cadetes-alunos tiveram um acréscimo significativo na % de massa gorda, e um decréscimo acentuado da capacidade aeróbia, força superior e potência. Ao supradito, adita o impacto negativo na saúde mental e na privação de liberdade. Os autores sugerem que, em situações futuras, os cadetes-alunos evitem a suspensão prolongada do treino aeróbio, de força e da potência, aplacando o reflexo negativo no desempenho e na saúde.

Alfim, José Miguel Maia Pita dos Santos aflora a temática da “Segurança energética e a relação Argélia – Portugal: Reflexões na Segurança”. O estudo do conceito do poder e das suas formas de adquirição distinguem toda a crónica da sociedade até aos dias de hoje. Do poder do Estado e das suas capacidades militares, passando pelo poder nuclear até ao poder económico, a história recente demonstra uma maior influência deste último fator face à globalização e ao apoderamento dos mercados. A evolução dos conceitos de segurança, através da expansão da sua dimensão, possibilitou a adoção de novas conceções securitárias como a Segurança Energética. A Argélia, nestes últimos anos, tem sido um dos principais fornecedores energéticos de Portugal, mormente no que concerne ao gás natural. Analisando a influência na segurança das relações energéticas entre Portugal e Argélia, o autor reflete sobre esta realidade específica e a importância na avaliação da segurança energética in casu.

Epilogada a breve apresentação das dissemelhantes contribuições que integram este novo número da Revista Portuguesa de Ciências Policiais, parece-nos evidente a recognição e construção de novo conhecimento no domínio da investigação, desenvolvimento e inovação das ciências policiais e do conceito mais amplo da segurança, tão presente e relevante para as sociedades coetâneas. O rigor, diversidade e pluridisciplinaridade desta intrincada palete temática desperta-nos para novas jornadas de descoberta e cogitação, valorizando de modo exorável o espólio científico e bibliográfico da Politeia, agora também disponível online, em acesso livre e gratuito, através do seu repositório (https://politeia-online.pt/).

Desfechamos com a imprescindível gratulação especial a todos aqueles que colaboraram nesta edição de 2021 da Politeia, quer ao nível da produção científica, quer no âmbito da revisão editorial.

Ad Orbem Per Scientia[i].

Intendente Roberto Narciso Andrade Fernandes

Diretor do ICPOL e Doutorando em Relações Internacionais

Prof. Doutor Paulo Machado Coordenador Científico do ICPOL

[i] “Ao Mundo pela Ciência” (tradução nossa).