Justiça, Governança e Media. O caso de Ihor Homenyuk

Nuno Caetano Lopes de Barros Poiares
Doutor em Sociologia e Especialista em Direito Penal; ICPOL-ISCPSI

 

Resumo (Português): No dia 29 de março de 2020, em pleno período pandémico, a comunicação social portuguesa informou que o cidadão de nacionalidade ucraniana Ihor Homenyuk tinha falecido no dia 12 de março, no espaço equiparado a Centro de Instalação Temporária do Aeroporto de Lisboa, com o presumível envolvimento de três inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. Mais tarde, os três arguidos foram acusados pela prática de um crime de homicídio qualificado e de um crime de detenção de arma proibida. No entanto as consequências políticas só surgiram nove meses depois.
O presente estudo qualitativo analisa a margem de discricionariedade na atuação dos órgãos de comunicação social, à luz de um estudo de caso, concluindo-se que os OCS contribuem para a priorização dos factos e exercem uma influência na velocidade da decisão política, em contraponto à velocidade da justiça, garantia institucional – liberdade da comunicação social – que pode enfraquecer ou reforçar a dimensão subjetiva dos direitos fundamentais, na medida em que não é possível garantir o total media enforcement.
Palavras-Chave: media; justiça penal; governança da segurança; total media enforcement.

Abstract (Inglês): On March 29, 2020, in the middle of a pandemic period, the Portuguese media reported that the Ukrainian citizen Ihor Homenyuk had died on March 12, in the space equivalent to the Temporary Installation Center of Lisbon Airport, with the presumed involvement of three inspectors from the Foreigners and Borders Service. Later, the three defendants were charged with committing a felony of qualified homicide and a crime of possession of a prohibited weapon. However, the political consequences did not appear until nine months later.
This qualitative study analyses the margin of discretion of the media in the light of a case study. The results indicate that the media contribute to the prioritisation of facts and influence the speed of political decision-making. This speed is achieved in counterpoint to the speed of justice, institutional guarantee – freedom of the media -, which may weaken or strengthen the subjective dimension of fundamental rights, insofar as it is not possible to guarantee the total media enforcement.
Keywords: social media, criminal justice, security governance, total media enforcement.

Resumen (Castellano): El 29 de marzo de 2020, en medio de un período pandémico, los medios portugueses informaron que el ciudadano ucraniano Ihor Homenyuk había fallecido el 12 de marzo, en el espacio equivalente al Centro de Instalación Temporal del Aeropuerto de Lisboa, con la presunta participación de tres inspectores. del Servicio de Extranjeros y Fronteras. Posteriormente, los tres imputados fueron acusados de cometer un delito grave de homicidio calificado y un delito de posesión de un arma prohibida. Sin embargo, las consecuencias políticas no aparecieron hasta nueve meses después. El presente estudio cualitativo analiza el margen de discrecionalidad en el rol de los medios, a la luz de un estudio de caso, concluyendo que los OCS contribuyen a la priorización de los hechos e influyen en la velocidad de la decisión política, en contraposición a la velocidad. de justicia, garantía institucional – libertad de los medios de comunicación – que pueden debilitar o reforzar la dimensión subjetiva de los derechos fundamentales, en la medida en que no sea posible garantizar la plena vigencia de la comunicación.
Palabras-Clave: media; justicia penal; gobierno de seguridade; cumplimiento total de los media.

INTRODUÇÃO
A comunicação é crucial em qualquer sociedade, constituindo uma necessidade inerente à vida humana. Um dos influentes teóricos da comunicação social foi o autor canadiano Marshall McLuhan, ao defender que os meios de comunicação social eletrónicos estão a criar uma aldeia global (Sequeira, 1994, p. 53; Giddens, 2009, p. 465). A essência da comunicação social – informar – encontra-se associada ao combate pela liberdade de expressão e ao pluralismo que constituem o selo distintivo das atuais sociedades democráticas, assumindo um papel de formador da opinião pública (Farias, 2001, p. 7; Almeida, 2007, p. 8; Alves, 2011, p. 190; Lourenço, 2013, p. 217). John Milton, considerado o pai da liberdade de imprensa, foi o seu primeiro defensor num discurso dirigido ao Parlamento de Inglaterra, em 1644 (Machado, 2002, p. 60; Agostinho, 2012, p. 10).
Na sociedade contemporânea, os jornais e a televisão ganharam uma influência na opinião pública, porque afetam as nossas atitudes e são meios de acesso ao conhecimento de que dependem muitas das nossas atividades sociais (Giddens, 2009, p. 456). Esta realidade ganhou uma maior relevância, sobretudo no Ocidente, quando os Estados começaram a monopolizar o uso legítimo da força enquadrado legalmente (Elias, 2006). Por esse motivo, o Direito tornou-se um objeto privilegiado dos media e entrou no quotidiano dos cidadãos, gerando uma relação nova e emotiva, com os problemas da Justiça (Cabral, 2014, p. 211), em particular a Justiça penal, que suscita uma atração natural por parte das pessoas e fascina a sociedade (Mota, 2018, p. 37). Bechara (2008) defende que as questões de natureza penal despertam nos indivíduos os sentimentos primitivos e isto acontece porque o direito penal e o crime são conaturais ao nosso mais profundo modo-de-ser com os outros: ubi societas, ibi crimen (Costa, 2007, p. 15).
E, por isso, não é de estranhar que o direito penal, sobretudo o direito penal formal, seja um palco de movimentação dos órgãos de comunicação social (doravante OCS) por excelência. O processo penal é das áreas do direito que mais capta o interesse mediático (Guimarães, 2016; Medeiro, 2018), dando luz aos problemas da Justiça e dos operadores conexos, como as forças e os serviços de segurança. Como escrevera Marcello Caetano (1977), as atividades da Polícia e da Justiça andam intimamente associadas (Valente, 2013, p. 257), maxime em processos com mediatismo como o da Casa Pia, Esmeralda, Freeport, o desaparecimento de Rui Pedro, a investigação que decorreu no IMTT por alegadas burlas e falsificações, investigações a familiares de antigos membros do governo e alguns presidentes de Câmara, entre outros (Agostinho, 2012, p. 2).
Na linha de pensamento de Figueiredo Dias, a crise de que se afirma hoje sofrer o sistema português de Justiça penal, atravessa horizontalmente todas as funções judiciárias (Dias, 2013, p. 155). A par desta realidade, emergem dificuldades na relação entre a Justiça penal e os media, decorrentes da competitividade entre os OCS, na procura de factos atuais e que apresentem contornos mobilizadores dos leitores e da opinião pública (Pereira, 2015). A polémica atrai. E, por isso, assistimos a um jornalismo que busca a exclusividade, decidindo o que é relevante sob uma enorme pressão – que se agudizou com o contexto pandémico – e, por vezes, sem respeito pelos mínimos éticos e deontológicos. Nos termos dos artigos 86.º, n.º 6, alínea b) e 88.º, n.º 1 do Código de Processo Penal (CPP), os OCS podem narrar circunstanciadamente o teor dos atos processuais ou reproduzir os seus termos, desde que não se encontrem cobertos pelo segredo de justiça ou a cujo decurso for permitida a assistência do público em geral. Sobre os jornalistas impende o direito de informar. Por sua vez, os cidadãos gozam do direito a serem informados. É neste contexto que se cruza a dimensão do segredo profissional com a dimensão do segredo de justiça (Guimarães, 2016).
No dia 12 de março de 2020, o cidadão ucraniano Ihor Homenyuk morreu enquanto se encontrava no Centro de Instalação Temporária do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) no aeroporto de Lisboa. Duas semanas depois, os OCS deram conhecimento do facto sem cativarem a opinião pública, opção decorrente da margem de discricionariedade que permite a priorização das notícias. No entanto, meses mais tarde, aquando do abrandamento da incidência pandémica, os media reorientaram o foco para este facto e o Governo, in casu o Ministério da Administração Interna (MAI), intensificou a apresentação de evidências de ação, invocando as conclusões do inquérito do relatório da Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI), a criação de um botão de pânico e a exoneração da diretora nacional do SEF, sem olvidar a intervenção do Ministério Público (MP), o que levanta as seguintes questões: a comunicação social influencia a governança da segurança e a decisão penal (Quister, 2017)? As garantias institucionais enfraquecem ou reforçam a dimensão subjetiva dos direitos fundamentais (Farias, 2001)?

I. DIREITO, JUSTIÇA E MEDIA
Na sociedade hodierna, o Direito, maxime o Direito Criminal, tornou-se um objeto privilegiado dos media e entrou no quotidiano dos cidadãos (Cabral, 2014, p. 211). Mas essa relação não tem sido pacífica. O sindicato dos magistrados do MP defendeu que, não obstante as décadas de democracia e de liberdade de expressão, não foi ainda possível alcançar um relacionamento saudável entre a Justiça e os OCS, que permita a ambos o desempenho adequado das suas funções (SMMP, 2002; Guimarães, 2016) . Uma das justificações reside nas características e finalidades de cada um destes meios. Entre o discurso hermético utilizado no foro e uma linguagem mais acessível empregue pelos media, a população tende a sentir-se mais próxima da segunda. Por outro lado, a Justiça pretende a pacificação social, enquanto a notícia vive do conflito e da indignação (Lourenço, 2013, p. 224). Por isso afirma-se que os media constituem uma ameaça para a Justiça quando passam falsas informações ou julgam os suspeitos antes dos operadores competentes para esse efeito, violando o princípio da presunção da inocência (Quister, 2017, p. 25; Mota, 2018, p. 44).
Os OCS apresentam uma forte relação com o sentimento de (in)segurança, a geografia do medo e o pânico moral (Machado, 2004), contribuindo para a sensação de que as leis vigentes no sistema penal não estão à altura dos problemas da criminalidade no país, e que o poder judiciário é moroso (Silva, 2019, p. 16). Acresce que o fenómeno de voyeurismo, da curiosidade mórbida pela investigação criminal, com factos cujo valor-notícia é elevado, conduz a uma busca desenfreada de informação por parte dos media, sem olvidar que os OCS são empresas que visam o lucro (Agostinho, 2012, p. 3; Quister, 2017, p. 29).
Por outro lado, para o público a violência consiste em vis corporalis, violência física contra as pessoas, os idosos e as crianças, onde os jovens ocupam um lugar importante no discurso coletivo sobre a violência (Venzon, 2001, p. 144), desde logo porque, como refere Durkheim, o crime ofende os sentimentos fortes que se encontram em todos os indivíduos normais da sociedade, ou seja, o crime, sendo algo normal, ofende os estados definidos da consciência coletiva (Machado e Santos, 2011, p. 61), i.e., o conjunto de crenças e sentimentos comuns à maioria dos indivíduos, a exterioridade dos factos sociais e a ação coerciva que é suscetível de exercer na consciência individual (Durkheim, 1895). Contudo, o crime é um facto que exibe uma objetividade e uma tradução no mundo exterior sobre o qual é exercido um juízo afirmativo de verdade, de certeza (Palma, 2018, pp. 13-14), que conflitua com juízos que põem em causa os princípios constitucionais da presunção da inocência e o in dubio pro reo.
A palavra media começou a ser empregue a partir da década de 90. Até então, devido a existência somente da rádio, o jornal impresso e a televisão, a expressão imprensa era a mais comummente utilizada (Guazina, 2007, pp. 49-50), atendendo que a discussão sobre a importância dos media e a liberdade de expressão foi evoluindo em função das alterações societais, em particular a partir da Revolução Francesa. No séc. XVIII, o ensaísta e filósofo Voltaire afirmou que a liberdade de escrever ou de falar impunemente demonstrava, quer a extrema bondade do Príncipe, quer a escravatura do povo, porque não era permitido falar senão àquele que nada pode (Lourenço, 2013, p. 218). A Revolução Francesa, no séc. XVIII, representa um marco na história da liberdade de expressão com a consequente proclamação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que consolidou o princípio que todos os homens nascem livres e com direitos iguais, incluindo a liberdade de expressão. Mais tarde, no século XX, a liberdade de expressão voltou a sofrer restrições com a subida ao poder de figuras como Franco em Espanha, Mussolini em Itália e Hitler na Alemanha. Em Espanha, o regime franquista aniquilou todas as formas de liberdade de expressão e imprensa, enquanto Mussolini suprimiu todas as liberdades. Em Itália a censura tinha lugar de destaque para evitar revoltas contra o poder instalado (Agostinho, 2012, pp. 10-12).
Mas após a 2.ª Grande Guerra Mundial foram desenvolvidos esforços internacionais na perspetiva de serem criadas condições para que os erros do passado não se repetissem através, e.g., da adoção da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) pelo Conselho da Europa, em Roma, no dia 4 de novembro de 1950, e os posteriores protocolos adicionais. Assim, o acervo comunitário e a densificação jurisprudencial feita pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), a propósito da liberdade de expressão (art.º 10.º da CEDH) tem sido de grande importância nos Estados membros, orientando-os na definição do que deve ser a liberdade de expressão (Mota, 2009, p. 20). O art.º 8.º da Convenção determina que qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência. Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito, senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem-estar económico do país, para a defesa da ordem e a prevenção das infrações penais, a proteção da saúde ou da moral, ou a proteção dos direitos e das liberdades de terceiros. Por outro lado, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) consagra a igualdade (art.º 1.º), a liberdade desde a nascença (art.º 3.º) e que ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação (art.º 12.º), e que, no exercício destes direitos, ninguém está sujeito senão às limitações estabelecidas pela lei, com vista a promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos outros e a fim de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar numa sociedade democrática (art.º 29.º, n.º 2) (Nunes, 2015, pp. 16-19). Mais tarde, na Recomendação da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa (1993) sobre a ética do jornalismo, é reconhecida a importância das notícias veiculadas pelos OCS, bem como os efeitos que são criados no público por via dessas mesmas notícias, ou seja, é admitido que os media no exercício da liberdade de imprensa têm uma influência na formação da opinião pública (Agostinho, 2012, p. 101).
No campo teórico, a partir de 1939, um estudo publicado pelo russo Sergei Tchakhotine, um dos principais teóricos da psicologia de massas no século XX, projetou a teoria hipodérmica, segundo a qual os media tinham um poder quase ilimitado para modelar as consciências. Mais tarde, até 1960, impôs-se o paradigma dos efeitos limitados, segundo o qual a mensagem transmitida pelos media não é diretamente difundida, sendo sujeita a uma filtragem por parte do tecido social. Recusava-se a ideia de sociedade de massas; ao invés, o indivíduo passava a ser considerado como um ser socialmente integrado ou identificado com grupos que têm algum poder ou influência sobre as ideias, capaz de descodificar e criticar as mensagens. A década de 1970 foi marcada pelo regresso à ideia de influência massiva e direta dos OCS. O paradigma dos efeitos limitados deu lugar à corrente dos efeitos cumulativos, em que os media desempenham um importante papel na construção da realidade e na formação da opinião pública (Tchakhotine, 1939; Pereira, 2015).
Em Portugal, até à instauração do regime democrático, em 1974, o crime era já objeto de divulgação pela comunicação social, no entanto, dadas as instruções impostas pelos Serviços de Censura, as notícias relacionadas com a criminalidade eram publicadas sem grandes pormenores, com o intuito de evitar o choque na sociedade e o não levantamento de tomadas de posição ou comentários impróprios. Nos anos subsequentes ao 25 de abril de 1974, com o relevo dado nesse tempo à informação dos acontecimentos políticos e sociais, o crime não foi imediatamente alvo de grande destaque, mas, ainda assim, foi notória a divulgação de crimes graves descritos com mais pormenor. Foi a partir da década de 1980 que surgiram os primeiros jornais populistas e com eles ocorreu um boom na divulgação da criminalidade violenta nos media em geral (Nunes, 2015, p. 21). Foi, assim, longo o caminho percorrido desde abril de 1974, assistindo-se ao nascimento de uma democracia de opinião a que acresceu o desenvolvimento de uma comunicação social na qual as televisões privadas assumiram um papel preponderante (Cabral, 2014, p. 221).
A empresarialização dos OCS tornou a ponderação do lucro como um dos fatores condicionantes da escolha do que publicar. Neste contexto, ganhou relevo o interesse pela Justiça, assegurando os media um papel de interlocutor privilegiado entre o cidadão e as decisões dos tribunais, tornando acessível uma área que era incompreensível para os cidadãos (Lourenço, 2013, p. 219). Contudo, na década de 1990, começou-se a verificar uma dessincronia entre os tempos da Justiça e os tempos da notícia, entre a visibilidade e o sensacionalismo, entre a presunção de inocência e o julgamento mediático, apesar das diversas restrições constitucionais e legais (Cabral, 2014, p. 213).
Nos termos do art.º 18.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Como limites constitucionais mais diretos, no que toca a abusos por via dos meios ocultos de investigação, podemos referir os artigos 34.º e 32.º, n.º 8 da CRP, que consagram o princípio da inviolabilidade do domicílio e da correspondência e a consagração como nulas todas as provas obtidas mediante abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações (Nunes, 2015, p. 10).
O art.º 32.º, n.º 2 da CRP, estipula o princípio da presunção de inocência, determinando que todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa. Nos termos do texto original do n.º 2 do art.º 6.º da CEDH, qualquer pessoa acusada de uma infração presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada. A presunção da inocência é uma garantia de respeito pela dignidade da pessoa humana que legitima a intervenção penal do Estado, na recolha, produção e valoração da prova. Acresce que o TEDH tem determinado que o princípio in dubio pro reo, tem como objetivo impor que as decisões dos tribunais nacionais devem estar bem fundamentadas quanto à determinação da convicção da prática do crime pelo arguido e que lhe seja dada a possibilidade de apresentar a sua defesa (Conceição, 2019).
Nos termos do art.º 37.º da CRP – liberdade de expressão e informação – todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de se informar, sem impedimentos nem discriminações, não podendo o exercício destes direitos ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura. As infrações cometidas no exercício destes direitos são apreciadas pelos tribunais judiciais e a todas as pessoas, singulares ou coletivas, é assegurado, em condições de igualdade e eficácia, o direito de resposta.
Por outro lado, o artigo 38.º da CRP impõe que é garantida a liberdade de imprensa, que implica a liberdade de expressão e criação dos jornalistas e colaboradores, bem como a intervenção dos primeiros na orientação editorial dos respetivos órgãos de comunicação social, salvo quando tiverem natureza doutrinária ou confessional; o direito dos jornalistas, nos termos da lei, ao acesso às fontes de informação e à proteção da independência e do sigilo profissionais; e o direito de fundação de jornais e de quaisquer outras publicações, independentemente de autorização administrativa, caução ou habilitação prévias. O Estado deve ainda assegurar a liberdade e a independência dos OCS perante o poder político e o poder económico, inclusivamente o funcionamento dos meios de comunicação social do setor público, que devem salvaguardar a sua independência perante o Governo e os demais poderes públicos, bem como assegurar a possibilidade de expressão e o confronto das diversas correntes de opinião.
A liberdade de expressão e informação, em geral, e a liberdade de imprensa, em particular, consagradas nos artigos 37.º e 38.º da CRP, estão reconhecidas no art.º 1.º da Lei n.º 2/99, de 13 de janeiro (Lei de Imprensa), alterada pela Lei n.º 78/2015, de 29 de julho, a Lei n.º 19/2012, de 8 de maio e a Lei n.º 18/2003, de 11 de junho (Guimarães, 2016). Estes princípios constitucionais encontram uma concordância axiológica no direito ordinário, maxime no art.º 86.º do CPP, dispositivo formal sobre a publicidade do processo e o segredo de justiça, ao determinar que o processo penal é, sob pena de nulidade, público, ressalvadas as exceções previstas na lei. O juiz de instrução pode, mediante requerimento do arguido, do assistente ou do ofendido e ouvido o MP, determinar, por despacho irrecorrível, a sujeição do processo, durante a fase de inquérito, a segredo de justiça, quando entenda que a publicidade prejudica os direitos daqueles sujeitos ou participantes processuais. Sempre que o MP entender que os interesses da investigação ou os direitos dos sujeitos processuais o justifiquem, pode determinar a aplicação ao processo, durante a fase de inquérito, do segredo de justiça, ficando essa decisão sujeita a validação pelo juiz de instrução no prazo máximo de 72 horas. No caso de o processo ter sido sujeito a segredo de justiça, o MP, oficiosamente ou mediante requerimento do arguido, do assistente ou do ofendido, pode determinar o seu levantamento em qualquer momento do inquérito. Acresce que a publicidade do processo implica os direitos de narração dos atos processuais, ou reprodução dos seus termos, pelos meios de comunicação social.
A publicidade do processo constitui uma garantia contra a arbitrariedade do Estado, satisfaz o direito de acompanhar a aplicação da justiça pelos cidadãos, garante o apaziguamento das tensões sociais geradas pela prática do crime e o convencimento da comunidade de que foi feita justiça (Lourenço, 2013, p. 223). O art.º 88.º do CPP determina ainda que é permitida aos OCS, dentro dos limites da lei, a narração circunstanciada do teor de atos processuais que se não encontrem cobertos pelo segredo de justiça ou a cujo decurso for permitida a assistência do público em geral.
No entanto, não é autorizada, sob pena de desobediência simples, a reprodução de peças processuais ou de documentos incorporados no processo, até à sentença de 1.ª instância, salvo se tiverem sido obtidos mediante certidão, solicitada com menção do fim a que se destina, ou se para tal tiver havido autorização expressa da autoridade judiciária que presidir à fase do processo no momento da publicação; a transmissão ou registo de imagens ou de tomadas de som relativas à prática de qualquer ato processual, nomeadamente da audiência, salvo se a autoridade judiciária competente, por despacho, a autorizar. Não pode, porém, ser consentida a transmissão ou registo de imagens ou tomada de som relativas a pessoa que a tal se opuser; e a publicitação, por qualquer meio, da identidade de vítimas de crimes de tráfico de órgãos humanos, tráfico de pessoas, contra a liberdade e autodeterminação sexual, a honra ou a reserva da vida privada, exceto se a vítima consentir expressamente na revelação da sua identidade ou se o crime for praticado através de um OCS.
Até à decisão sobre a publicidade da audiência não é ainda legítima a narração de atos processuais anteriores àquela quando o juiz a tiver proibido com fundamento nos factos ou circunstâncias referidas anteriormente. E não é permitida a publicação, por qualquer meio, de conversações ou comunicações intercetadas no âmbito de um processo, salvo se não estiverem sujeitas a segredo de justiça e os intervenientes expressamente consentirem na publicação.
II. A COMUNICAÇÃO SOCIAL E A PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA
A atividade dos tribunais judiciais, no âmbito das causas penais, tem vindo a suscitar um interesse crescente por parte dos cidadãos porque, como afirma Luhmann, existe uma apetência da opinião pública pelo desvio e por conflitos (Lourenço, 2013, p. 219), surgindo os media, como uma instância informal de controlo social e uma caixa-de-ressonância do Direito Penal que apresenta, em alguns casos, uma verdade distorcida (Almeida, 2007). É também comum verificarem-se interferências da imprensa na esfera jurídica (Alves, 2011, p. 192), sobretudo porque existe uma concorrência (Commaille, 1994) por parte dos media, no que diz respeito às funções instrumentais, políticas e simbólicas dos tribunais (Machado e Santos, 2011, p. 144).
O ordenamento jurídico português tem vindo a reforçar os direitos do arguido no âmbito do processo penal. Por isso, quaisquer alterações formais são fortemente escrutinadas. Por exemplo, quando entrou em vigor o CPP de 1987, invocaram-se desconformidades constitucionais, mormente a atribuição do domínio do inquérito ao MP ou a competência dos órgãos de polícia criminal (OPC) para realizarem diligências e investigações durante o inquérito como previsto no art.º 270.º, n.º 1 do CPP, que foram clarificadas pelo Acórdão do Tribunal Constitucional (Plenário) n.º 7/87, de 9 de janeiro de 1987, que tratou da avaliação preventiva e abstrata do novo CPP (Mendes, 2017, p. 38). Contudo, apesar dessa clarificação, a Procuradoria-Geral da República (PGR) continua a alertar para os riscos associados aos procedimentos administrativos prévios à abertura do inquérito (pré-inquérito administrativo), no âmbito dos quais os OPC procedem a diligências como a confirmação de suspeitas da prática de crime e a recolha da prova, remetendo, no fim, o acervo informativo ao MP para que abra um inquérito. Desse modo, o procedimento administrativo prossegue sob a forma de inquérito penal, possibilitando a introdução no processo penal de prova obtida de um modo oculto, fora do alcance dos visados que não sabem que estão a ser investigados e não podem acionar as suas garantias de defesa (Dias e Pereira, 2018, p. 5).
O princípio da legalidade e a estrutura acusatória do processo garantem, assim, que um suspeito da prática de um crime veja os seus direitos constitucionais salvaguardados. Por isso, é essencial o papel do juiz de instrução durante o inquérito e a instrução, como também importa garantir que o MP não emite qualquer juízo sobre a validade da lei, sobre o seu conteúdo intrínseco ou sobre as suas lacunas, ou que os valores morais de cada magistrado orientem a sua atividade (Silva, 2013, p. 105), como, por vezes, se depreende da leitura de algumas decisões judiciais.
Mas, por outro lado, os OCS têm alargado o âmbito da possibilidade de agressão a bens jurídicos pessoais. Diversos autores defendem que os media ultrapassam muitas vezes os limites de sua atividade informativa, ao relatar factos não comprovados ou inverídicos acerca de delitos, de maneira tendenciosa, induzindo os seus destinatários a pré-julgamentos a respeito do facto e dos agentes envolvidos (Costa, 1992; Sequeira, 1994; Cícero Silva e Padilha Neto cit. in Alves, 2011, pp. 193-194).
A liberdade de expressão e comunicação constitui um direito fundamental de dimensão subjetiva (protege a autonomia pessoal) e institucional (tutela a formação da opinião pública, a participação de todos no debate público e o funcionamento do regime democrático) assegurado a todo cidadão, consistindo na faculdade de manifestar livremente os seus pensamentos, opiniões, juízos de valor, bem como na faculdade de comunicar ou receber informações verdadeiras, sem impedimentos nem discriminações. Consequência importante é a aplicação do critério da comprovação da verdade ao pressuposto de facto dessa liberdade, ou seja, os acontecimentos de interesse geral verificados na vida social são suscetíveis de prova de sua autenticidade (Farias, 2001).
Entre os direitos e liberdades reconhecidos pela CEDH, incluem-se as liberdades de pensamento, de expressão e de imprensa. Uma das formas mais relevantes da liberdade de expressão é exercida pelos jornalistas, através dos media, para difundir informações e opiniões, em que o direito de informar obriga o autor da informação a agir de boa-fé, com base em factos exatos (Gonçalves, 2019, pp. 1668-1671). O direito de liberdade de expressão, nos termos do art.º 10.º da CEDH, compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber e de transmitir informações ou ideias sem a ingerência de quaisquer autoridades públicas ou de fronteiras. Mas o exercício destas liberdades pode ser submetido a certas formalidades, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a proteção da saúde ou da moral, a proteção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial. O art.º 6.º, n.º 1 da CEDH reconhece ainda, a qualquer pessoa, o direito a um processo administrativo, civil e penal equitativo. A jurisprudência do TEDH assumiu que o preceito citado impõe a qualquer tribunal a obrigação de proceder a um exame efetivo dos requerimentos, alegações e meios de prova oferecidos pelas partes, sem preconceitos acerca da relevância desses elementos para a decisão a tomar (Mendes, 2019, p. 1060). A verdade é, assim, o limite interno da liberdade de comunicação e espera-se que o emissor de uma notícia demonstre uma postura de apreço pela verdade, bem como o uso de todos os meios disponíveis ao seu alcance, para certificar-se da idoneidade do fato antes de sua veiculação (Faria, 2001).
Do ponto de vista do valor de notícia, os OCS buscam os seguintes critérios: amplitude, frequência, negatividade, caráter inesperado, clareza, personalização, referência a pessoas que integram a elite, consonância e continuidade. Estes critérios acabam por definir se a matéria em causa pode ser considerada como tendo valor, motivador de interesse do público e, por isso, gerador de receita por via do aumento da audiência. Todos estes critérios acabam por desembocar apenas num único critério: se o facto em causa vai interessar ao público em geral (Agostinho, 2012, p. 103). Jewkes (2004) entende que as visões do mundo proporcionadas pelos media estão subjacentes a um certo grau de distorção, apresentando os valores de noticiabilidade no século XXI, ou seja, características associadas à configuração de um processo judicial suscetível de levar à exposição pública: simplificação, individualismo, risco, sexo, celebridades ou pessoas de elevado estatuto, proximidade, violência, imagens fortes, crianças, ideologia conservadora e manobras políticas (Machado e Santos, 2011, pp. 148-149). Os meios de comunicação propiciam aos poderes o contacto com as reações às suas políticas. Como refere Innerarity (2010), os meios de comunicação não nos informam sobre o que acontece, mas sim sobre o que os outros consideram ter o valor-notícia (Lourenço, 2013; Cabral, 2014).
A liberdade de expressão consiste no direito de dizer, manifestar ou difundir, sob qualquer forma, ideias e informações de qualquer natureza. Representa a possibilidade de realizar investigação, obter acesso a informações e a transmiti-las sem barreiras. Assim, a liberdade de expressão nunca se submete à censura prévia, porém pode ser regulada partindo da premissa da possibilidade de responsabilização posterior. A liberdade de expressão, portanto, não é absoluta (Santos e Elias, 2020, pp. 423-424). Isto significa que é fundamental garantir que o princípio de presunção da inocência não é violado sistematicamente, através de pré-julgamentos, sobretudo quando o crime alcança uma repercussão social, alimentado pela ideia de que um suspeito é culpado até que se prove a sua inocência (Alves, 2011; Medeiro, 2018), sem olvidar a carga simbólica negativa da expressão “arguido”, junto da opinião pública.
Neste âmbito, importa invocar Dias e Andrade (1997, pp. 443-444), que defendem que a polícia constitui o símbolo mais visível do sistema formal, o mais presente no quotidiano dos cidadãos e o first-line enforcer da lei criminal, sendo a instância que processa o caudal mais volumoso de desvio, mas também a que o faz em condições de maior discricionariedade. A ideia de discricionariedade policial briga com as representações da coletividade e da polícia. Segundo tais representações, a polícia é uma instância de controlo virada para a manutenção da ordem e a aplicação da lei, nos termos da mais estrita legalidade. Contudo, verificou-se ser irrealista qualquer expetativa de total enforcement, i.e., a resposta da polícia a toda a criminalidade.
Assim, podemos dizer que, mutatis mutandis, não é possível o total media enforcement, ou seja, garantir que os media conseguem informar todos os factos, o que abre espaço para uma elevada margem de discricionariedade, culminando numa priorização daquilo que deve ser informado e potenciando o distanciamento e incompreensão entre os tempos da Justiça e os tempos das notícias (Cabral, 2014, p. 213). A liberdade de comunicação social consiste numa garantia institucional conferida aos OCS para fazerem circular os pensamentos, as opiniões, os juízos de valor, os factos, as informações e as notícias de interesse social (Farias, 2001, pp. 259-260). Mas essa garantia institucional, se não for supervisionada e escrutinada, pode potenciar a fricção com a Justiça e conduzir aos pré-julgamentos. Numa sociedade marcada pela velocidade, não há espaço para o aprofundamento. A informação precisa ser de fácil entendimento, apenas com os elementos mais importantes. Os media selecionam os assuntos que consideram mais relevantes para a sociedade, constituindo-se, os OCS, uma instância indireta de controlo da sociedade na medida em que aponta os assuntos que devem ser debatidos (Almeida, 2007, p. 26).
Entendemos pertinente, assim, a solução apresentada por Lourenço (2013) ao propor a promoção da sensibilização para as atribuições de cada parte e a criação de gabinetes de imprensa nos tribunais, para que os jornalistas possam conhecer o dia-a-dia da atividade judiciária, tendo em consideração que seriam disponibilizados àqueles apenas os elementos públicos, nos termos da lei (Lourenço, 2013; Pereira, 2015). Mas importa, em paralelo, investir na formação jurídica, ética e deontológica, nas escolas superiores de comunicação social, em particular no domínio do Direito Constitucional Penal, para garantir que o princípio da presunção da inocência encontra-se enraizado no tecido do mandato dos profissionais dos media, como uma luz orientadora intransponível.
III. O CASO DE IHOR HOMENYUK
No dia 10 de março de 2020, pelas 10:25, Ihor Homenyuk chegou a Lisboa no voo TK444, proveniente de Istambul, e foi inquirido na primeira linha de controlo de fronteira. Na sua ficha, elaborada pelos inspetores do SEF, ficou registada a ausência de visto adequado à finalidade pretendida com a seguinte fundamentação: “Diz que vem trabalhar. Agricultura. Não tem bilhete de volta para Ucrânia. Apresenta € 300”. Ihor foi encaminhado para o controlo de segunda linha na Unidade de Apoio. Às 19h50, na sequência de uma entrevista realizada por um inspetor, com o apoio de uma inspetora com domínio da língua russa, foi proposta a recusa de entrada em território nacional, por ausência de visto de trabalho, que foi validada por um inspetor coordenador. Segundo a IGAI, Ihor começou a evidenciar alterações comportamentais, que se traduziram em rubor facial, tremores, suores e numa atitude indiferente, inclusive quando foi notificado da recusa de entrada em território nacional. Às 21:30, Ihor foi conduzido ao Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária (doravante EECIT), sito nas instalações do Aeroporto de Lisboa, por dois inspetores do SEF. Na zona do RX Schengen, Ihor sofreu uma crise convulsiva, assim qualificada pelos enfermeiros da Cruz Vermelha Portuguesa (CVP), entretanto ativada, e foi encaminhado para o Hospital de Santa Maria, por indicação dos elementos da CVP, onde foi sujeito a exames complementares. Em 11 de março, pelas 11:00, Ihor teve alta do hospital, tendo sido prescrita medicação para a epilepsia, convulsões, a abstinência alcoólica e a ansiedade, embora o diagnóstico não tivesse sido conclusivo. Do hospital ligaram para a mesma inspetora que servira de intérprete para que esta fizesse perguntas a Ihor. Às 11h30, Ihor foi admitido no EECIT, sem incidentes. No dia 12 de março, pelas 8:15, quando três inspetores se dirigiram à sala onde, no dia anterior, tinham deixado Homenyuk em isolamento e manietado com fita adesiva à volta dos tornozelos e dos braços, à entrada para a sala, um dos inspetores terá dito a uma vigilante para não registar os seus nomes. Às 18:40 foi declarado o óbito de Ihor .
No dia 29 de março, Portugal ficou a saber, através da TVI, que um cidadão ucraniano foi morto no EECIT do Aeroporto de Lisboa, em 12 de março, num contexto de tortura evidente, como admitiu a diretora do SEF oito meses depois . No dia 30 de março, a comunicação social informou que a Polícia Judiciária (PJ) tinha procedido à detenção de 3 inspetores do SEF pela suspeita do crime de homicídio do cidadão de nacionalidade ucraniana Ihor Homenyuk . No mesmo dia, a IGAI instaurou processos disciplinares ao diretor e subdiretor de Fronteiras de Lisboa, ao coordenador do EECIT do Aeroporto, assim como aos inspetores do SEF, que ficaram com julgamento marcado para o dia 10 de janeiro de 2021.
No dia 8 de abril de 2020, o jornal Diário de Notícias apresentou um exclusivo com o título “SEF disse ao MP que Ihor fora acometido de doença súbita. O juiz validou a detenção de ucraniano por e-mail” . No mesmo dia, o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, foi ouvido no Parlamento, onde afirmou que houve negligência grosseira e encobrimento grave na morte de Ihor Homenyuk e anunciou o encerramento e restruturação do EECIT do Aeroporto de Lisboa, que passou a ser utilizado apenas para cidadãos com recusa de entrada em Portugal, deixando de aí ser alojados os requerentes de asilo.
No dia 5 de agosto, o EECIT do Aeroporto de Lisboa, entretanto remodelado, reabriu com um novo regulamento. As camaratas foram convertidas em quartos individuais e cada uma foi munida de um botão de pânico. Mas o novo regulamento do Centro só foi distribuído, em comunicação interna para todas as unidades orgânicas do SEF, no dia 26 de novembro. No dia 18 de agosto, a viúva do cidadão ucraniano, Oksana Homenyuk, pediu 230 mil euros de indemnização adiantada ao Estado Português pela morte de Ihor, conforme está previsto na Lei n.º 104/2009, de 14 de setembro. No dia 30 de setembro, o MP acusou os 3 inspetores do SEF do crime de homicídio qualificado e foram revelados testemunhos que demonstram a prática continuada de agressões e outras ilegalidades no EECIT do Aeroporto de Lisboa.
Em 7 de outubro, o ministro Eduardo Cabrita enviou para o MP as conclusões do inquérito da IGAI, que concluiu pela instauração de 12 processos disciplinares para os 3 inspetores já formalmente acusados e outros 9 inspetores que, por ação ou omissão, terão contribuído, supostamente, para a morte do cidadão ucraniano.
No dia 30 de outubro, o Governo determinou a realização de uma auditoria aos procedimentos internos do SEF, visando a sua avaliação e correção. Dias depois, em 4 de novembro, foi assinado um protocolo entre o MAI, o Ministério da Justiça (MJ) e a Ordem dos Advogados, para garantir a assistência jurídica do Estado a cidadãos estrangeiros cuja entrada em território nacional tenha sido recusada nos aeroportos de Lisboa, Porto, Faro, Funchal e Ponta Delgada, assegurando o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos .
No dia 16 de novembro, a diretora nacional do SEF, Cristina Gatões, admitiu que a morte do cidadão ucraniano resultou de uma situação de tortura evidente, conforme concluíra a investigação da PJ. O caso conduziu à demissão do diretor e do subdiretor de Fronteiras do Aeroporto de Lisboa. No dia 18 de novembro, o Partido Social Democrata (PSD) e a deputada não inscrita, Joacine Katar Moreira, apresentaram um requerimento a exigir a audição do ministro da Administração Interna e da diretora nacional do SEF. O Partido Socialista juntou mais um pedido de audição à Provedora de Justiça, invocando que estava em causa uma conduta atentatória dos direitos humanos, considerando ser necessário ativar o Mecanismo Nacional de Prevenção da Tortura, que funciona na Provedoria .
No dia 26 de novembro, foi distribuído o novo regulamento do EECIT, aprovado pelo ministro da Administração Interna em 31 de julho de 2020, por todas as unidades orgânicas do SEF, embora já fosse do conhecimento dos responsáveis daquele espaço e estivesse em vigor desde 5 de agosto. O novo regulamento determina que os quartos individuais passam a estar apetrechados com um botão de pânico que, quando ativado, obriga ao seu registo em relatório, com indicação de hora e motivo que determinou a sua ativação e comunicação da mesma ao responsável pelo EECIT . No dia 7 de dezembro, os cidadãos estrangeiros que começaram a ficar alojados nas instalações do SEF no Aeroporto de Lisboa passaram a ter um botão de pânico nos seus quartos .
No dia 8 de dezembro, o deputado Duarte Marques, do PSD, fez um ultimato ao ministro da Administração Interna, exigindo-lhe a mudança da direção do SEF ou que se demitisse do Governo. Nove meses após a morte de Homenyuk, nem o SEF nem qualquer representante do Estado português contactaram a família do cidadão ucraniano, declara o advogado da viúva, Gaspar Schwalbach.
No dia 9 de dezembro, Cristina Gatões, demitiu-se do cargo de diretora nacional do SEF. Oficialmente, a sua saída foi enquadrada numa redefinição do exercício das funções policiais relativas à gestão de fronteiras e ao combate às redes de tráfico humano. A direção do serviço de segurança ficou a cargo dos diretores nacionais adjuntos Luís Barão e Fernando Silva. Um inquérito da IGAI implicou no crime um total 12 elementos do SEF, vários seguranças privados e um enfermeiro, que podiam ter, supostamente, evitado a morte de Ihor .
Este incidente culminou na ponderação de extinção e reestruturação do SEF. O ministro da Administração Interna apresentou, no dia 14 de janeiro de 2021, o plano de reestruturação do SEF na reunião do Conselho Superior de Segurança Interna. Eduardo Cabrita anunciou também que o SEF vai passar a designar-se como Serviço de Estrangeiros e Asilo (SEA). O novo organismo mantém as funções administrativas relacionadas com passaportes, vistos, autorizações de residência e refugiados. As restantes funções são distribuídas pelas várias polícias . Eduardo Cabrita informou que as competências do SEF, em matéria de investigação criminal, i.e., a imigração ilegal e o tráfico de seres humanos, vão ser transferidas para a PJ, criminalidade que já consta no seu quadro de competências, o que não obriga uma revisão da Lei de Organização da Investigação Criminal. Por outro lado, a Polícia de Segurança Pública (PSP) ficará responsável pelo controlo das fronteiras portuárias e aeroportuárias e pela expulsão de cidadãos estrangeiros em situação ilegal ou com condenações judiciais. A Guarda Nacional Republicana (GNR) vai controlar as fronteiras terrestres e marítimas e os processos dos pedidos de asilo e de nacionalidade. As autorizações de residência e os pareceres sobre os vistos consulares ficarão com o SEA. Em relação aos cerca de 1.800 trabalhadores do SEF, o Governo quer que estes tenham opção de escolha, independentemente do cargo que ocupam. Por exemplo, os inspetores do SEF da carreira na fiscalização e investigação podem ser transferidos para a PJ, para a PSP ou para o novo organismo designado como SEA .
No dia 14 de dezembro, foi publicada a Resolução do Conselho de Ministros n.º 107/2020, de 10 de dezembro, que aprovou a responsabilidade indemnizatória do Estado pela morte do cidadão ucraniano à sua guarda, em instalações públicas, pelos factos ocorridos no EECIT do Aeroporto de Lisboa, a 12 de março de 2020, e que resultou a morte do cidadão Ihor Homenyuk, verificando-se o envolvimento de 3 inspetores do SEF, acusados pela prática de um crime de homicídio qualificado e de um crime de detenção de arma proibida. O Governo entendeu que devia assumir a responsabilidade indemnizatória e ressarcir, de forma célere, a viúva e os filhos menores de Ihor Homenyuk, nos termos do art.º 22.º da CRP e ao abrigo do art.º 8.º do anexo à Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, tendo acolhido a disponibilidade manifestada pela Provedora de Justiça para colaborar na definição do montante da indemnização a pagar e nos termos do respetivo pagamento; e determinou que a referida indemnização fosse suportada pelo orçamento do SEF, sendo o direito de regresso exercido nos termos que resultarem da responsabilidade individual judicialmente provada .
No dia 2 de fevereiro de 2021, os três inspetores do SEF começaram a ser julgados pelo crime de homicídio qualificado, no Campus de Justiça, em Lisboa, negando que tivessem deixado Ihor em cúbito ventral, que tenham dados socos ou espancado o cidadão ucraniano até à morte .
No dia 17 de fevereiro de 2021, o ministro da Administração Interna recusou associar a reforma do SEF à morte do cidadão ucraniano. A questão da reestruturação do SEF dominou as quatro horas de audição do ministro, sem que tivesse clarificado as linhas dessa reforma, salvo que a mesma visa a separação orgânica, entre as funções policiais e as funções de autorização de documentação de imigrantes, com as funções policiais do SEF a serem distribuídas pela GNR, PSP e PJ .
Pelo exposto, podemos extrair a seguinte síntese factual:
1) Ihor Homenyuk, cidadão de nacionalidade ucraniana, faleceu no dia 12 de março de 2020, enquanto se encontrava sob custódia de um serviço de segurança em Portugal;
2) No dia 29 de março, os OCS comunicaram a notícia, mas, face ao contexto pandémico, não mereceu o destaque que seria natural num cenário normalizado, ou seja, os media priorizaram o que, naquele momento era considerado mais relevante para a opinião pública;
3) No dia 30 de março, a PJ procedeu à detenção de 3 inspetores do SEF. A IGAI instaurou processos disciplinares ao diretor e subdiretor de Fronteiras de Lisboa, ao coordenador do EECIT do Aeroporto de Lisboa, e aos 3 inspetores do SEF;
4) Após o verão, quando a pandemia começou a perder terreno, os OCS voltaram a incidir a atenção na morte de Ihor Homenyuk, em particular quando, no dia 30 de setembro, o MP acusou formalmente os inspetores do SEF pelo crime de homicídio qualificado;
5) No dia 7 de outubro, o ministro Eduardo Cabrita enviou para o MP as conclusões do inquérito da IGAI, que concluiu pela instauração de 12 processos disciplinares;
6) Não existem evidências materiais, até ao momento, que comprovem que o MP tenha adotado um procedimento diferenciado perante o atual mediatismo dos factos;
7) Entre 30 de outubro e 14 de dezembro, hiato temporal de mês e meio, o MAI avançou com diversas medidas, nomeadamente: determinou a realização de uma auditoria aos procedimentos internos do SEF; assinou um protocolo com o MJ e a Ordem dos Advogados, para garantir assistência jurídica do Estado em todos os aeroportos; criou um botão de pânico nos quartos nas instalações do SEF no aeroporto de Lisboa; demitiu a diretora nacional do SEF e publicou a Resolução do Conselho de Ministros n.º 107/2020, de 10 de dezembro;
8) A Resolução do Conselho de Ministros n.º 107/2020, de 10 de dezembro, que aprovou a responsabilidade indemnizatória do Estado pela morte do cidadão ucraniano, refere, expressamente, que existiu o envolvimento de 3 inspetores do SEF e determina que a referida indemnização seja suportada pelo orçamento do SEF;
9) A instalação do botão de pânico e a forma como os fundamentos são enunciados na Resolução do Conselho de Ministros, ainda que exista uma referência ao direito de regresso nos termos que resultarem da responsabilidade judicialmente provada, belisca o princípio da presunção da inocência e reforça a imagem negativa que paira em torno do SEF, apesar de se tratar de um episódio circunscrito no tempo, no espaço e nos agentes presumivelmente envolvidos.
CONCLUSÃO
Hoje, fala-se de uma ordem de informação mundial, um sistema internacional de produção, distribuição e consumo de matéria informativa (Giddens, 2009). No presente artigo, pretendeu-se apresentar um esboço provisório de explicação para as perguntas de partida: a comunicação social influencia a governança da segurança e a decisão penal? As garantias institucionais enfraquecem ou reforçam a dimensão subjetiva dos direitos fundamentais?
Para esse efeito, socorremo-nos de um estudo de caso, nomeadamente o incidente mortal, ocorrido no dia 12 de março de 2020, com o cidadão ucraniano Homenyuk. Verificámos que, tendencialmente, existe uma incompreensão entre o tempo da Justiça e o tempo dos media. Apesar de diversos diagnósticos, verifica-se a necessidade de uma reconstrução da comunicação, que tem sido ausente, entre a Justiça penal e a comunicação social (Agostinho, 2012; Cabral, 2014), o que potencia os conflitos que terão de ser resolvidos por todos os intervenientes, de modo que possa ser feita justiça e a comunidade possa ter conhecimento. Esta mútua incompreensão apenas se resolverá pela formação profissional, ética e deontológica, e pela sensibilização de cada interveniente para o papel e função desempenhada pelo outro. Neste sentido, a criação de gabinetes de informação junto das instituições judiciárias e policiais pode ser um contributo para um melhor entendimento (Lourenço, 2013, pp. 250-251), assim como a formação em Direito Constitucional Penal, para garantir que o princípio da presunção da inocência passa a ser um limite intransponível.
No entanto, no caso em análise, não ficou demonstrado, de forma inequívoca, que as autoridades judiciárias tenham adotado um procedimento diferenciado, no domínio da promoção da ação penal e na consequente celeridade processual, perante o mediatismo dos factos. Mas foram sinalizadas duas velocidades, determinadas pela priorização das notícias pelos media. E foi essa alternância de prioridades que conduziu a uma flutuação da materialização de evidências por parte do Governo, na perspetiva de corresponder às expetativas da opinião pública, a partir do momento em que os media começaram a canalizar a atenção para os factos ocorridos em março de 2020. Para além disso, pode-se afirmar, com base nos dados recolhidos, que não existiu um distanciamento no tratamento dos factos, por parte de alguns OCS e do Governo, o que pôs em causa o princípio da presunção da inocência.
Acresce que não se verificaram quaisquer esforços mitigadores de danos colaterais, por parte do MAI, na perspetiva de demonstrar à opinião pública que o facto ocorrido no Aeroporto de Lisboa se tratou de um episódio altamente censurável, mas circunscrito no tempo, no espaço e nos agentes envolvidos, e que não deve beliscar o trabalho exercido diariamente por centenas de mulheres e homens nos quadros do SEF.
Senão vejamos: no dia 12 de março de 2020 foi declarado o óbito de Ihor e, no dia 29 do mesmo mês, a TVI deu conhecimento do facto publicamente. Em termos legais, à luz dos dados disponíveis, a IGAI instaurou processos disciplinares, no dia 30 de março, ao diretor e subdiretor de Fronteiras de Lisboa, ao coordenador do EECIT do Aeroporto, e aos 3 inspetores do SEF, no decurso da detenção dos inspetores pela PJ; e, no dia 30 de setembro, o MP deduziu acusação contra os 3 funcionários do SEF pelo crime de homicídio qualificado de Ihor Homenyuk. Mas foi a partir de fins de outubro de 2020 que se verificaram reações públicas expressivas, por parte das autoridades públicas, tendo o MAI adotado um conjunto de ações, face ao crescendo de pressão dos media e a necessidade de mitigar eventuais danos emergentes, maxime no domínio da opinião pública.
Assim, no hiato temporal de mês e meio, o Governo determinou, nomeadamente, a realização de uma auditoria aos procedimentos internos do SEF; assinou um protocolo com o MJ e a Ordem dos Advogados para garantir assistência jurídica do Estado nos aeroportos; ordenou a instalação de um botão de pânico em todos os quartos dos alojamentos nas instalações do SEF no Aeroporto de Lisboa, uma medida que surge no novo regulamento do EECIT; a diretora nacional do SEF demitiu-se; e publicou a Resolução do Conselho de Ministros n.º 107/2020, de 10 de dezembro, que aprovou a responsabilidade indemnizatória do Estado pela morte do cidadão à sua guarda e em instalações públicas.
A perda de uma vida humana, sob a responsabilidade de um serviço de segurança é, no atual quadro jurídico-constitucional assente na dignidade humana, um facto ética e socialmente reprovável. No entanto, os OCS têm ao seu dispor a possibilidade de priorizar as notícias, pois não é possível garantir o total media enforcement. Nessa medida, a pandemia remeteu para segundo plano quaisquer outras notícias, o que, no nosso entendimento, é razoavelmente compreensível num quadro de risco e incerteza. No entanto, é menos aceitável o exercício tardio da autoridade política, ainda que possamos atenuar essa reação à luz da exigente tarefa de coordenar o planeamento operacional no âmbito da pandemia. Se é verdade que o ministro da Administração Interna determinou a competente instauração da averiguação pela IGAI, não é menos verdade que só nove meses mais tarde é que se verificaram medidas concretas (demissão da diretora nacional, avaliação da reestruturação do SEF, pagamento da indemnização através do orçamento do SEF à viúva e revisão dos procedimentos no EECIT do Aeroporto de Lisboa). Esta opção leva-nos a concluir que as ações foram implementadas com o intuito de serenar a opinião pública, face a pressão mediática. Mas, por outro lado, conduziu ao enfraquecimento institucional de um serviço de segurança por causa da presumível intervenção de alguns dos seus profissionais.
Quando os cidadãos, os media e as instituições não respeitam um princípio de matriz constitucional, em particular no domínio dos direitos dos arguidos, podemos afirmar que não se vive, em plenitude, num Estado de Direito e que as garantias institucionais podem enfraquecer a dimensão subjetiva dos direitos fundamentais. Esta conclusão surge em sintonia com os resultados apresentados pelo Observatório da Qualidade da Democracia, no Policy Brief 2018, que identifica o Estado de Direito e os meios de comunicação social, como as duas áreas democráticas que não reúnem uma avaliação positiva (Lobo et al., 2018).

REFERÊNCIAS

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